CRÔNICA: MEU PRIMEIRO LIVRO – PAÇO A PASSO

CRÔNICA: MEU PRIMEIRO LIVRO – PAÇO A PASSO

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CAPÍTULO V – MEU PRIMEIRO BAILE

Saindo de 1908, o nosso Ford avança por alguns bons minutos, sinal de que estávamos numa esticada maior de tempo e de espaço. O relógio do painel já aponta para o ano de 1965, e percebo que se iniciam os procedimentos de aterrissagem, que demoram mais alguns minutos, até que o carro aterrissa e para, bem em frente ao Clube Recreativo de São Manuel.

A data do painel indica que estamos em 1965, um sábado, e estamos por volta das 22 horas. Um cartaz colocado em pé, bem na frente da entrada do clube, anuncia um grande baile com a “Orquestra do Sílvio Mazzuca”.

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Imediatamente me lembro de todos aqueles bailes da minha juventude, onde tínhamos o privilégio de dançar com grandes orquestras ao vivo, nada de bandas, Dj ou música eletrônica, mas músicas românticas de verdade, aquelas para se dançar de rosto colado.

Não sei exatamente quantos anos tinha quando fui ao meu primeiro baile, mas posso dizer que jamais o esqueci e agora eu estava ali, revivendo cada minuto daquele dia, daquela noite de gala no Clube Recreativo.

Ali sentado no carro, em frente ao clube, vendo pais e filhos chegando, todos elegantemente vestidos, as meninas de vestido longo e os meninos de terno e gravata, percebo como a minha memória manteve tudo isso muito bem guardado, como se o meu primeiro baile tivesse sido na noite anterior.

Consigo me lembrar desde o primeiro instante, daquele dia, daquele primeiro baile, quando entrei no salão, com os meus amigos e vi ao fundo o lindo palco iluminado e a orquestra tocando a deliciosa música “Besame Mucho”.

Se não fosse uma cuba libre, logo dividida entre goles com os amigos, para acalmar um pouco a ansiedade e o nervosismo, talvez eu não conseguisse ficar em pé, nem controlar a tremedeira nos joelhos.

O ápice do nervosismo foi quando precisei me aproximar de uma mesa e pedir àquela menina bonita, com quem eu estava flertando há um bom tempo, se queria dançar comigo.

O medo de “tomar uma tábua”, expressão que definia o “não”, nessa época era enorme e fez com que eu sentisse, mais uma vez, todo o meu corpo tremer, dos pés à cabeça.

Acho que para os jovens de hoje, fica difícil explicar como isso era emocionante, como esse ritual do antes e do depois do dançar, pela primeira vez, de rosto colado, era fantástico, e o quanto tudo isso fazia parte das nossas vidas.

Aqueles atos preliminares, antes de iniciar uma paquera, que, quem sabe, com sorte, seria o começo de um namoro, era muito nervoso, mas era também muito bom. Sentir aquela sensação “do procurar”, “do identificar”, e “de conseguir” namorar a sua garota ideal, era um êxtase para todos nós.

Naquele dia, eu me lembro, já tinha corrido o olhar no entorno do salão, trocado os primeiros olhares, ainda que furtivos, antes de criar coragem e me aproximar da mesa onde a garota estava, com seus pais.

Sim, porque as garotas só iam aos bailes acompanhadas dos pais, tios ou então com algum casal muito amigo da família.

Depois foi aquele momento mágico de enfrentar a hora difícil de chegar bem na frente da garota e balbuciar, tremendo os lábios, a frase: – Quer dançar comigo? 

Nessa hora ficávamos com a grande dúvida, se o sim dela seria “o sim formal” para não dar o “cano” (dizer não) ao jovem audacioso, apenas por educação ou se seria “o sim real”, aquele de quem queria realmente dançar.

Todos nós sabíamos que a regra vigente, ditado pelos pais, era de que a garota só podia dançar no máximo três vezes, justamente para não dar a entender ao rapaz que não havia nenhum outro interesse que o da simples e boa educação de dançar uma seleção.

Afinal para começar a namorar os pais precisavam saber, antes, quem era o garoto, filho de quem, se tinha uma boa fama ou não.

O fato é que naquele dia, ela me disse sim e senti o correspondente sim verdadeiro, dito pelos seus olhos.

Então furtivamente emendamos a primeira, a segunda, a terceira e depois mais uma outra seleção, com a ajuda de um amigo que a tirou para dançar e me cedeu a vez, para burlarmos a fiscalização dos pais, quanto ao número máximo de seleções permitidas.

Nossos rostos se colaram e a arte da sedução começou a fluir, com as conversas de pé de ouvido, a troca de olhares, onde pequenas mentiras, também eram possíveis, em nome do lindo e ingênuo romantismo.

Na quarta seleção, assim que meu amigo me cedeu a vez, fomos para aquela parte do salão onde as luzes tinham menor intensidade, bem no escurinho e longe dos pais. Era o momento certo para aproveitar a pouca luz e lhe dar aquele beijo inesperado, na face, o único da noite, e então poder ver a sua reação, sentir seus braços arrepiarem, e ver surgir aquele leve rubor na sua face.

Depois daquele beijo, voltamos ao meio do salão, para continuarmos a dançar de rosto colado, nos fitarmos nos olhos e eu poder ver escapar dos seus lábios aquele sorriso maroto e complacente. Era o sorriso de quem, talvez, aceitasse, no dia seguinte, o meu pedido de namoro.

Embora hoje não se tenha mais nada disso, ninguém vai conseguir roubar da minha memória esse primeiro baile, essa noite mágica, onde a leveza de uma dança me fez flutuar pelo salão, como se fosse uma pessoa especial.

Ninguém poderá se apossar daquele meu sentir, das batidas aceleradas do coração, e daquele sentimento único de estar de bem com a vida, de ser aceito, ser admirado, e do grande alívio de ter dançado com a garota que eu queria e ter conseguido dar o meu primeiro e inocente beijo.

Só sei que ali, relembrando novamente tudo aquilo, senti o privilégio de voar no tempo para reviver aquele baile, e de poder imaginar um reencontro com aquela mesma garota, com quem dancei naquele primeiro baile.

Porque eu então poderia lhe dizer o que não tive oportunidade de dizer naquele dia:

“Se um dia você sentir uma brisa leve e suave a lhe tocar o rosto, não tenha medo, pois será apenas a minha saudade que lhe beija a face, como aquele beijo de despedida, no minuto de silêncio, ao final da última seleção.”

Como nada é perfeito e nem dura para sempre, o painel do carro começa a piscar suas luzes, o bip toca e me recoloca na realidade da viagem no tempo.

Percebo que aquelas memórias do meu primeiro baile fizeram com que o tempo corresse mais que nunca, sem que eu conseguisse sequer perceber que a última música daquela última seleção do meu primeiro baile tinha acabado….

Meus devaneios poéticos são logo interrompidos pela realidade da sequência final de luzes do painel do carro. Ao mesmo tempo o rádio começa a tocar o bolero de Ravel, como que para dar um ritmo àquela despedida do primeiro baile.

O carro parece que entende a mistura de sentimentos da saudade e do ritmo daquela música e começa a chacoalhar, dançar para os lados, como se estivesse ele próprio no meio do salão de baile ao som daquele lindo bolero.

Então o seu motor ruge, e ele sai em desabalada carreira pela descida da 7 de setembro, cruza a ponte sobre o rio Paraiso e passa voando já no início da subida do morro, no sentido da estrada que ruma para o pequeno distrito de Aparecida.

O Ford ganha altura e rapidamente some no meio das nuvens, talvez para mais um baile da vida, em alguma outra dimensão no tempo.

Quem sabe?

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Thiago Melego

Radialista e jornalista. Formado em administração de empresas, gestão de recursos humanos, MBA em negociação e vendas. Atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Software.

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