RICHETTI: CAPÍTULO VIII – A SERENATA DO SARGENTO GARCIA

RICHETTI: CAPÍTULO VIII – A SERENATA DO SARGENTO GARCIA

cabeca-ricchetti RICHETTI: CAPÍTULO VIII - A SERENATA DO SARGENTO GARCIA

Percebo que o nosso Ford agora desce e aterrissa de modo atabalhoado, bem defronte ao jardim da cidade, talvez porque ainda esteja inebriado pelo lança perfume do final daquele fantástico carnaval. Parecia até que era dirigido por um motorista iniciante, ante seu primeiro passeio solo.

O painel aponta que estamos em 1968 e me vejo outra vez na época da adolescência. O relógio me mostra que são 23 horas.

Olho para um grupo de adolescentes na esquina do jardim e me identifico entre eles. Percebo que é uma preparação para se fazer mais uma serenata.
Começo então a recordar, imediatamente, dessa época maravilhosa, quando com quinze ou dezesseis anos, curtíamos, como nunca essa nossa pequena cidade do interior e quase todos os sábados fazíamos serenatas.

A nossa cidade, nessa época, já começava a viver suas grandes mudanças econômicas, e suas enormes fazendas de café eram aos poucos substituídas por extensas áreas de cultivo de cana, transformando antigos colonos em boias-frias e substituindo os tradicionais armazéns de secos e molhados por grandes redes de supermercados.

Praticamente todos os sábados, por volta das 23 horas, fosse uma noite quente de verão ou uma noite fria de inverno, não importava, tínhamos o compromisso sagrado, de nos reunirmos, todos os amigos de infância, no entorno do jardim, em frente a um dos bares mais antigos da cidade, para tomarmos algumas cervejas e então sairmos, para fazer as nossas serenatas.

Esse nosso encontro aos sábados, com a turminha de amigos, só se dava após, termos todos nós, cumprido o nosso ritual, quando levávamos as namoradas para o cinema e depois as deixávamos todas em suas casas, na certeza de que ali estariam seguras e intocadas, não sem antes, é claro ter dado alguns beijos e abraços na esquina próxima de suas casas, pois os pais não podiam ver ou às vezes nem mesmo saber…

Uma coisa que sempre caracterizava os grupos de adolescentes da nossa cidade natal, nas várias faixas de idade, era a grande diversidade socioeconômica das famílias de origem.

Nosso grupo de amigos, em particular, tinha filhos de pequenos comerciantes, de empresários, de vendedores de bilhetes, de fazendeiros, de médicos, de advogados, de atacadistas de café, de professores, de gerentes de banco e diretores de escola, de farmacêuticos etc.

O bacana de tudo isso é que essas diferenças nunca geraram preconceitos, nunca foram sentidas ou nos impediram de cultuarmos uma grande e sólida amizade que perdura até hoje, com reencontros periódicos ao longo desses anos. Às vezes penso, como éramos uma geração diferenciada, que se preocupava realmente muito mais com o ser do que com o ter.

Imagino eu, que uma das causas disso era talvez, porque não tínhamos nessa época a obsessão pelo consumismo, que vemos no mundo globalizado de hoje.

Voltando aos nossos encontros de sábado à noite, às vezes o “esquenta” para usar uma linguagem dos nossos dias, era feito ali mesmo, no pátio da Igreja Matriz, quando alguém “descolava” um litro de cachaça ou conhaque.
Muito embora, na maioria das vezes, a gente preferia era mesmo tomar umas cervejas, acompanhadas de um “rabo de galo” ou “fogo paulista” no reservado de um daqueles bares da região do jardim da cidade.

Os preferidos eram o bar do japonês Kawakami, ou então um outro bar, de um português extremamente simpático e brincalhão, o João, cujo bar era conhecido como Bar Colonial, embora de colonial, na sua decoração, não tivesse absolutamente nada!

Depois de tomar umas e outras e com todo mundo já calibrado, como dizíamos na época, e assegurado que a turma que tocava o violão estivesse presente e com os devidos instrumentos afinados, embora a afinação, com o nível alto da cachaça, já tivesse deixado de ser importante, lá íamos nós para as nossas serenatas, em homenagem às meninas preferidas do colégio.

O roteiro a ser cumprido pela serenata era definido de forma democrática e não era aprovado, sem algumas discussões, sobre por onde a nossa seresta tinha que começar ou passar. Por vezes o critério de escolha da rota era definido pelas “matérias de colégio”, tal como:

  • Olha pessoal hoje primeiro vamos passar na casa do professor de matemática, depois na casa do professor de física etc.
    Obviamente que o objetivo não era lembrarmos dos nossos professores, mas sim de suas filhas, que faziam parte da nossa lista de paqueras.
    Outras vezes o critério envolvia localização geográfica, como que se tivéssemos todos à época, munidos de um smartphone e o “waze” ligado:
  • Vamos passar primeiro na Epitácio Pessoa, depois na XV de novembro, depois na Gomes Faria, e assim seguíamos montando o roteiro de ruas onde moravam as nossas musas adolescentes.

Vez por outra o critério sugerido caminhava pelas características físicas das meninas, que hoje, com a tolerância zero para tudo, talvez fosse considerado um critério altamente machista ou de ‘bullying’, mas que na época era simplesmente uma coisa normal e sem malícia.

Este último critério entrava nos detalhes mesmo e era como se estivéssemos todos num júri de programas dominicais da TV:

  • Primeiro passamos na casa daquelas duas morenas de cabelos compridos, da rua 4 de junho, depois vamos na casa da moreninha dos olhos verdes ali depois da Igreja, aí seguimos para a morena perto do mercado e depois vamos para o lado da rodoviária, onde está a ‘namoradinha do amigo meu’.
    Lembrando que ‘namoradinha de um amigo meu’ era o apelido que tínhamos dado a uma das nossas musas colegiais, uma loirinha linda que namorava um dos nossos amigos. O apelido era uma referência a uma conhecida música do Roberto Carlos, nosso ídolo da Jovem Guarda, cuja letra da canção dizia: ‘Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu…’

Após as democráticas e ecléticas discussões e definida finalmente a rota, saíamos todos nós, noite adentro, sempre acompanhados do nosso querido e inseparável amigo declamador de poesias, Delton Flávio, cujo nome duplo havia sido inspirado em senadores romanos e que acabou, por assim dizer, creio eu, influenciando a sua fantástica verve poética.

Esse nosso querido poeta, apesar de ter mais idade que todos nós, tinha se tornado aquele amigo inseparável que nos acompanhava em praticamente tudo. Desde as nossas viagens de férias a Santos ou à alguma fazenda da região, passando pelas nossas bebedeiras memoráveis, pelos blocos de carnavais, pelos jogos de cacheta, pelas partidas de sinuca, e claro pelas serenatas.

Sempre com suas declamações apaixonadas de poemas que não só coloriam, mas davam aquele lastro poético e romântico a esses nossos eventos, fazendo com que ganhássemos mais pontos na nossa reputação, junto às nossas lindas colegiais.

O nosso ‘Vinícius de Moraes’ tinha um vasto repertório de poesias, mas tinha uma delas em especial, que sempre estava presente nas nossas serenatas.
O poema se chamava ‘Éramos três’ e me lembro claramente que ele sempre gostava de mencionar o autor, o poeta Olegário Mariano, talvez com a intensão de nos mostrar o seu refinamento e conhecimento do mundo da poesia.

Até hoje, ainda, vez ou outra, me surpreendo declamando mentalmente seus versos: ‘Éramos três em torno à mesa, três que a vida na sua trama de ilusões urdidas, juntou no mesmo afeto e na mesma viuvez… um músico, um pintor e um poeta. Éramos três…

Então, ali sentado no carro, recordando tudo isso, me bate a saudade desses bons tempos, das nossas serenatas, da nossa turminha e em particular desse nosso grande amigo Delton, que cedo se foi…

Dessa adolescência intensa e das nossas noites de serenatas, o velho Ford havia me transportado, naquela janela do tempo, exatamente para a serenata que mais marcou a todos nós, tenho certeza.

‘Era uma noite de inverno, o vento frio nos castigava, a temperatura beirava os 10° C e uma leve garoa caia sobre a nossa querida cidade, e lá estávamos todos nós reunidos, o afinado e descolado grupo de rapazes, demonstrando às garotas os seus dotes musicais e poéticos.
Desta feita estávamos em frente à casa do professor de física, que contribuía claro, com suas três filhas, na nossa lista de gatinhas do colegial. Nosso amigo Beto, ‘beatlemaníaco’ dedilhava o violão, e fazia fundo com uma balada dos Beatles enquanto o nosso poeta Delton declamava sua poesia preferida: ‘Éramos três.’

Mais atrás o ‘back vocal’ formado pelos demais do grupo, em verdadeiro coro etílico, tentava acompanhar, com sons emitidos através da boca o ritmo daquela canção…

Enquanto isso a luz do corredor da casa do professor acendia e apagava, sinal de que as nossas meninas sempre se valiam, para nos avisar que estavam ouvindo, mas que por razões paternas não podiam abrir a janela ou a porta e apreciar ao vivo a serenata.
Então, de repente, ouvimos uma sirene estridente que interrompeu a nossa serenata!

Era um ‘Camburão’ da polícia, nome que à época se dava para a perua veraneio, branca e preta que fazia a ronda policial, na nossa cidade.
Me lembro bem do Camburão, dobrando repentinamente a rua, com sua sirene ligada, luzes acessas, a toda velocidade, tendo à frente, com a cabeça para fora da janela, o nosso querido ‘Sargento Garcia’.

Sargento Garcia era o apelido que tal figura policial, muito pitoresca, tinha, pela sua semelhança física que tão bem caracterizava o caricato personagem homônimo da série de cinema ‘O Zorro’, que assistíramos todos, ainda garotos, no velho cinema da cidade.

A chegada do camburão com o ‘Sargento Garcia’ e sua equipe foi tragicômica, com alguns de nós debandando, completamente assustados, em disparada, para todos os lados.

Alguns pularam muros, uns correram pelas ruas contíguas, outros se esconderam no Santuário ou na vizinha horta do Seminário de padres. Parecia uma corrida de baratas, quando se acende uma luz repentina de um velho porão.

O Sargento demorou uns 5 minutos para sair do Camburão, e estava todo mal-ajambrado, de camisa aberta, mostrando sua vasta barrida, com o quepe torto na cabeça, como se tivesse saído da cama àquela hora.
Ele empunhava na mão, uma lanterna e todo esbaforido gritava:

  • Prendam os meliantes!
  • Prendam os meliantes!

Seus auxiliares, guardas não menos atrapalhados e literalmente ‘fora de forma’, corriam para um lado e para outro, desesperados, e tentavam a todo custo, com seus corpos nada atléticos, capturar vários adolescentes, no auge do seu vigor físico.

Nesse corre-corre, alguns dos nossos guardiões da seresta, entre correr e ficar, resolveram ficar e se esconder na varanda do Prof. Chiquinho Rebuá, onde foram facilmente flagrados pelos faróis do Camburão e capturados pela ‘eficiente’ equipe policial.

Nesse grupo de ‘meliantes capturados na sacada estavam o nosso violeiro Beto Saglietti encontrado em pé, com o corpo contra a parede, abraçado ao inseparável violão, o Rubinho Pegoraro, e se bem me lembro, mais o Bia e o Natão.

Imediatamente o Sargento ordenou que sua equipe de policiais colocassem os jovens ‘playboys’ no camburão e rumassem para a delegacia local.
Descobrimos algum tempo depois, que o denunciante ou ‘delator X-9’, tinha sido um vizinho insensível, que havia chamado a polícia e denunciado a ‘bagunça absurda dos playboyzinhos que não tem o que fazer’.

Com certeza, este vizinho, primeiro não tinha tido infância, segundo não tinha a sensibilidade suficiente para entender o que era uma serenata de adolescentes ou também porque, talvez, ouso imaginar, estivesse irritado com a negativa da esposa em fazer amor ou seja, usando expressão da época, a esposa devia estar ‘dormindo de calça jeans…’

Ao chegarem todos na delegacia, os pais dos jovens já estavam lá, chamados que foram pelo então delegado, que ainda de paletó de pijama, totalmente descabelado, pois havia sido acordado pelo célere sargento, se mostrava extremamente irritado e contrariado.

Sua irritação não era pela serenata juvenil, mas sim pelo fato de que, em plena madrugada, teve que se levantar para atender uma ocorrência ridícula, que havia sido levado a cabo, pelo ‘diligente e sagaz’ Sargento e sua equipe.
Assim na frente de todos, o delegado furioso, deu uma descompostura geral no Sargento e sua equipe de guardas, pela impropriedade da infeliz captura dos tais ‘meliantes e dispensou todos os jovens seresteiros, pedindo mil desculpas aos pais ali presentes!

Recordando toda aquela aventura da serenata, ali, encostado no carro, bem na frente do jardim, começo a rir sozinho.
Alguns minutos depois vejo que a luz vermelha do painel começa a piscar, dando o alerta de que aquele espaço de tempo havia se esgotado. Entro no Ford e ele alça voo.

Percebo que foi um voo extremamente curto e que ele aterrissa exatamente em frente à delegacia, usando a pequena viagem no espaço e no tempo para que eu pudesse reviver o exato momento em que meus amigos e seus pais saem da delegacia, naquele famoso dia da serenata.

Quando olho pela janela, vejo que logo atrás dos meus amigos e pais vem o famoso Sargento Garcia. Ele vem, mais uma vez esbaforido, agora em minha direção, e gritando:

  • Parado aí, seu meliante! Que carro é esse que voa?
  • Teje preso!

O Ford, como se conhecesse o Sargento Garcia e suas peripécias de longa data, ronca firme, acende as luzes amarelas, depois as verdes na sequência, me mostrando que vai partir.

Então o nosso Ford acelera alto e rapidamente ganha velocidade e alça voo, deixando o prédio da delegacia e toda aquela aventura para trás, incluindo o Sargento e seus policiais que a essa altura estão correndo em direção ao Camburão, quem sabe imaginando que poderiam me perseguir!

Antes de desaparecer nos céus, o Ford entra no espírito daquele dia e faz uma curva para voltar e sobrevoar a avenida, no sentido do trevo de saída da cidade, em direção a curva da Olaria, bem perto onde é hoje o Poliesportivo, e com isso passar novamente em cima da delegacia.

Como que transformado novamente em um moleque de 15 anos eu aproveito a inusitada oportunidade e abrindo a janela grito para o Sargento Garcia, fazendo-lhe uma bela banana com meus braços:

  • Aquiiii Óóóó Sargento !!!!!!

O pessoal todo em frente à delegacia cai na gargalhada e eu também. Olho pelo retrovisor e ainda consigo ver o velho Sargento, pulando e gritando, vermelho de raiva, mordendo o próprio quepe, embasbacado, sem saber o que fazer….

Em alguns segundos desaparecemos nas nuvens acima da entrada da cidade.

Ainda rindo de tudo aquilo e daquela cena com o Sargento Garcia e seus diletos guardas me vem à mente a inevitável pergunta, que a cada término de uma dessas aventuras, volta a povoar meus pensamentos:

  • Para onde o Fordão vai me levar? Que surpresa ele me fará agora?

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Thiago Melego

Radialista e jornalista. Formado em administração de empresas, gestão de recursos humanos, MBA em negociação e vendas. Atualmente cursando Análise e Desenvolvimento de Software.

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