A toalhinha de crochê, por José Luiz Ricchetti

Knitted gifts handmade. Wooden background. Top view. Making decoration

Estávamos em outubro, mês do meu aniversário, tempo de manga.

Eu sabia disso porque duas coisas sempre me lembravam que estava chegando perto do dia do meu aniversário, a primeira revoada de içás e as primeiras mangas maduras no pé.

Aquela manhã eu tinha acordado com o canto dos sabiás e bem-te-vis na mangueira da nossa vizinha de baixo.

Essa nossa vizinha era uma senhora já bastante idosa, solteira e muito simpática que tinha duas paixões na vida o piano e o crochê.

Nós morávamos numa rua que era uma descida, assim as casas ficavam em desníveis uma em relação a outra de modo que a casa da vizinha de cima estava numa posição mais alta em relação a nossa e a vizinha de baixo num nível mais baixo que o da nossa casa.

A mangueira que a nossa vizinha de baixo tinha no seu quintal era tão enorme e alta que avançava sua copa por sobre a nossa casa, a ponto de fazer uma grande sombra em uma parte do nosso quintal.

Então a nossa querida pianista, amistosamente nos autorizava a apanhar as mangas que estavam do nosso lado. Tínhamos, por assim dizer, uma mangueira compartilhada, coisas de vizinhos do interior, que acredito que um morador da cidade grande, tem uma certa dificuldade de entender.

Seus trabalhos de tricô eram incríveis. Até hoje guardo na memória uma capa de tricô, na cor azul claro, que encobria o trinco da nossa geladeira, que tinha sido um presente dessa nossa querida velhinha, à minha mãe, num dos aniversários dela.

Para quem não sabe havia, na época, algumas geladeiras da marca GE que tinham um grande trinco para abrir a porta, parecendo um puxador em forma de alavanca e essa capa de tricô, era muito usada para encapar esse trinco. Hoje seria classificada como cafona, mas na época era bonito.

Além dessa capa de trinco ela fazia também capas para Liquidificadores, toalhinhas de bandeja, centros de mesa e tantas outras coisas, a maioria de crochê, além de outras peças com pedaços de feltro colorido.

Em algumas dessas criações ela misturava figuras de feltro, em forma de frutas, de coração, de bichinhos e tantos outros tipos e na sua volta fazia o acabamento em crochê.

Minha mãe costuma fazer doces, as vezes uma comida especial, um macarrão caseiro e me pedia que sempre levasse para ela.

Em todas essas vezes que eu lhe entregava a comida ou doce, não havia uma, em que não recebesse em troca, alguma toalhinha ou enfeite de feltro ou crochê.

Com isso, eram tantos desses pequenos mimos que recebíamos dela que minha mãe preparou uma linda caixa, onde organizava todos esses trabalhos, separados por cores e tipos e os mantinha guardados, num armário.

A vizinha de cima era também muito simpática. Ela tinha quatro filhos, e a primogênita do casal andava de namoro com meu irmão mais velho. Se podia ver pelo seu olhar que ela estava muito apaixonada por ele.

Eles flertavam bastante, trocando olhares, através do muro e até chegaram a ensaiar um namoro mais sério, mas infelizmente uma repentina doença, dessas, que hoje com as vacinas, seria irrelevante, acabou a levando deste mundo, ainda muito jovem.

Foi muito triste e hoje penso, que se não fosse a sua morte prematura, talvez ela e meu irmão estivessem casados.

Isso me faz pensar, se realmente somos donos absolutos da nossa vida. Hoje eu acredito que muitas surpresas nos acontecem no decorrer da vida que mudam o final da história.

Creio que foi assim também que aconteceu comigo e a menina que era sobrinha da nossa vizinha de cima…..

Ela morava em São Paulo e vez ou outra aparecia na cidade para umas férias ou feriado e se hospedava na casa da minha vizinha.

Ela era uma menina linda! corpo magro, alta, morena de cabelos castanhos escuros e ondulados, olhos verdes, e no primeiro dia que a vi me apaixonei.

Paixão de criança, de adolescente é claro, mas foi uma paixão.

Tudo começou quando numa daquelas trocas de olhares habituais entre a prima dela e meu irmão, ela apareceu com sua carinha linda junto ao muro, para olhar também, talvez, para matar a curiosidade e conhecer o ‘namorado da prima’, e aí nossos olhares se cruzaram.

Acho que foi amor à primeira vista.

A partir desse dia e durante todo o período de férias eu e ela passamos a nos ver assim também, numa troca diária de olhares, por cima daquele muro.

Se passaram mais algum tempo, e nós dois só assim com os flertes de férias e feriados, nesse nosso ‘namoro de muro’.

Até que um dia, na escola, vários amigos começaram a comentar, sobre uma certa menina bonita de São Paulo que tinha vindo estudar no nosso colégio. Era ela!

Quando eu a vi, ali na escadaria da escola, não acreditei, meu coração disparou, minhas mãos ficaram molhadas e meu rosto enrubesceu.

Nossos olhares se cruzaram novamente e dali para começarmos um namoro de verdade foi um pequeno passo.

Veio então a fase deliciosa de primeiro encostarmos nossos braços, de dar aquela tremedeira e suor frio, da troca de conversas bobas, de dar o primeiro abraço no meio de sorrisos tímidos.

Me lembro do dia em que pela primeira vez a segurei pela mão e ficamos os dois ali parados, sem dizermos nada, mudos, calados, mas com aquele sorriso nos lábios que dizia tudo um para o outro, sorriso que dizia como era gostoso dizer sim.

Que falar sobre as idas ao cinema, do pegar na mão, ali no escurinho, talvez mesmo só para trocarmos nossos olhares, vermos estampados no rosto o sorriso doce e maroto, e então poder dar um abraço e um inocente beijo no rosto.

Que gostoso foi o namorar escondido, na esquina, a dois quarteirões da casa dela, longe da vista do pai, bravo e ciumento, que não queria ver ninguém, chegar perto da sua, pequena princesa.

Não tem como esquecer das balas de hortelã ou chita, compradas no bar em frente à escola, para chuparmos no banco da Igreja Matriz, sem querer saber se estava frio ou calor, se chovia ou fazia sol.

Recordo dos dias, em que eu ficava à sua espera na frente da escola, olhando ela vir pela rua, lá de longe, com aquele seu sorriso, seu cabelos desmanchando ao vento, até chegar bem pertinho de mim e eu poder lhe beijar o rosto e ficarmos ali, fazendo hora, esperando o sinal, segurando seus livros, as sete horas da manhã.

Foram tempos de encontrá-la na missa das dez, de estar lá junto, no coro da igreja, perto do altar, eu e os amigos do lado direito e ela de véu e terço na mão, junto com as outras meninas, do lado esquerdo da nave.

Depois poder ver aquele seu olhar cruzar com o meu, ao cochichar com a melhor amiga do lado, e o seu piscar de canto de olho, sentada nos bancos da frente da Igreja Matriz.

Como esquecer quando saímos no mesmo bloco, roupa quase igual, para dançar e cantar no nosso primeiro carnaval no tênis clube que ‘cachaça não é água não….’ e ‘quanto riso, quanta alegria….’ para ficarmos então até as quatro da manhã, e depois ainda sentar no chão, como dois apaixonados, abraçados naquele mar de confetes e serpentinas.

No meio de tantas boas lembranças me é impossível esquecer, quando, no dia do seu aniversário, eu sem dinheiro, peguei daquela caixa da minha mãe, aquela mesma caixa, na qual ela guardava os trabalhos de crochê da nossa querida vizinha, uma linda toalhinha de crochê com um coração vermelho no centro, que embrulhei e lhe dei de presente.

Acho que uma das últimas lembranças que tenho dela foi exatamente desse dia quando vi a sua cara de surpresa e de espanto com aquele meu presente inusitado e do beijo e o abraço apertado que recebi e das lágrimas que lhe escorreram pelo rosto.

Pouco tempo depois, ela se mudou novamente, com a família, para São Paulo….

Acho que a vi mais uma vez, num feriado de carnaval, na cidade, muito anos depois, mas não nos falamos.

Eu já namorava outra garota e ela acho que namorava alguém também em São Paulo.

O tempo e a distância, nem sempre perdoam!

Não temos controle sobre os nossos destinos, como a prima dela e meu irmão, não tiveram, por razões completamente diferentes.

Nós também não ficamos juntos…..

E o tempo voa! e muitos e muitos anos se passaram….

Até que dia destes, abrindo o Facebook, vejo que uma de suas filhas, havia se casado.

Olho algumas fotos postadas e me fixo numa delas em que ela aparece com a filha no altar. Impossível não recordar tudo isso que se passou quando vejo como mãe e filha se parecem tanto.

Vejo na filha aquele mesmo rostinho, aqueles mesmos olhos verdes que conheci através do muro de casa, há tantos e tantos anos atrás.

Inevitavelmente me vem à memória uma das últimas vezes em que nos vimos, exatamente aquele dia em lhe dei o meu primeiro e único presente, a toalhinha de crochê.

Imediatamente me ocorre que ainda tenho guardado aquela caixa com os crochês, na qual, minha mãe guardava os trabalhos ganhos da nossa vizinha.

Muito curioso, vou até o meu armário onde a tenho guardada, abro a caixa e logo em cima vejo várias daquelas toalhinhas.

Pego uma delas nas mãos e surpreso vejo que é exatamente como aquela que dei a ela de presente, naquele seu dia de aniversário.

A mesma toalhinha de crochê com o coração vermelho no seu centro!

Será coincidência ou uma brincadeira do destino? Não sei…..

Prefiro terminar dando crédito à sensibilidade de Pablo Neruda:

‘Dois amantes que foram felizes não têm fim nem morte, eles nascem e morrem tantas vezes enquanto vivem, pois são eternos como é eterna a natureza.’

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