
Acordei pela manhã com os passarinhos cantando na varanda de casa. Depois de muitos anos morando na capital, tinha me mudado para o interior, e podia ter esse privilégio de acordar com esse som vindo da nossa mãe natureza.
Logo me lembrei que naquela noite havia tido um sonho, um sonho com minha família italiana, que divido aqui com vocês:
Me vi chegando de carro à minha antiga cidade natal, São Manuel, no interior do estado de São Paulo, berço de muitas famílias de imigrantes italianos.
Estacionei o carro, em frente a uma casa comercial de grande movimento, que me parecia familiar e imediatamente reconheço logo à sua frente um grande prédio, que era, sem dúvida, o Paço Municipal, edifício que fez parte de toda a minha infância e adolescência.
Noto que o prédio está novíssimo e que tem uma grande movimentação à sua volta, com muita gente, banda de música e vários senhores discursando…. naquele momento percebi que eu estava exatamente no dia da sua inauguração, embora nessa época eu nem houvesse nascido…..
Enquanto admiro a beleza daquele lindo prédio, inesperadamente vejo passar, reluzindo na minha frente, um Ford Bigode modelo 1908, ano de fabricação do seu primeiro exemplar. Como podia ser?
Ainda espantado com o prédio e aquele lindo e antigo automóvel, volto os meus olhos para o alto da sua torre e vejo, lá em cima, bem na ponta do seu para-raios, uma placa, em forma de bandeirola, com o ano de 1908 gravado, em letras vazadas.
Ouço palmas e noto que aqueles homens, todos vestidos de terno e gravata e alguns até de fraque e cartola, acabaram de descerrar uma placa. Observo bem o que está escrito na placa de inauguração e percebo pela data estampada, que eu estava exatamente no ano de 1908!
Começo então a olhar para todos os lados, reconhecendo outros pontos importantes, da minha cidade natal, como o Jardim, a Estação de Trem, a Igreja Matriz e outros tantos locais da minha infância, até parar os olhos novamente na casa comercial, em frente a qual eu havia estacionado, para então ver seu nome, gravado a tinta, numa placa metálica, bem no alto: ‘Casa Ricchetti’.
Caramba! Aquele prédio comercial era a loja fundada pelo meu bisavô Ângelo Ricchetti, e mais incrível ainda, parece que estou vendo ele, em pessoa, ali em pé, bem na frente da loja, impecável no seu terno de casimira inglesa, gravata borboleta e as inusitadas polainas, cobrindo seus brilhantes sapatos pretos de verniz, que vi tantas vezes em álbuns de fotos da nossa família! Seria ele mesmo?
Aquelas imagens todas, o Paço Municipal, sua inauguração, a loja, meu bisavô ali de pé em frente, todas essas inúmeras lembranças, me fazem relembrar fatos e acontecimentos que sempre ouvi, no decorrer do tempo, sobre o ramo italiano da nossa família.
Ao longo da minha vida eu já tinha percebido que minhas maiores influências tinham vindo desse lado italiano, talvez porque convivi muito mais com eles, na infância e na adolescência, principalmente com meu tio avô Hermínio que se tornou, posso dizer assim, meu padrinho cultural, pelo grande apreço que ele tinha pela leitura e pela história em geral, fazendo com que eu despertasse, desde cedo, o interesse pela literatura, pela cultura e pelas artes.
Meu lado italiano era formado pela união das famílias D´Andrea e Ricchetti, ambas originárias do sul da Itália, da região de Puglia e sempre ouvi dizer que meu bisavô, além da sua formação musical de maestro, teria trazido consigo grandes motivações políticas, já que era simpatizante de Giuseppe Garibaldi, e que o seu grande objetivo ao imigrar, tinha sido o de influenciar, com seus ideais republicanos e libertários, os italianos, que tinham vindo para o Brasil.
Ele não teria vindo da Itália como o imigrante tradicional, para trabalhar nas lavouras no interior do Brasil, como a grande maioria dos italianos que aqui aportaram, mas sim como um representante da burguesia europeia, politizada, que trazia consigo os fortes traços da cultura política, jornalística e musical da Europa, com o claro objetivo de propagá-la junto aos seus compatriotas e imigrantes italianos.
Por outro lado, sua filha (minha avó) tinha nascido em São Bartolomeu in Galdo – Província de Benevento, no sul da Itália em 1º de dezembro de 1894 e um fato curioso se contava sempre, sobre a origem do seu nome, Linda Ricchetti.
No dia e hora em que seu pai, o Maestro Ricchetti recebia a notícia do seu nascimento, ele estaria regendo uma orquestra, cuja ópera em questão se chamava “Linda di Chamonix”, de Gaetano Donizetti, célebre compositor de óperas italiano e por este fato acabou dando o nome à sua primeira filha de Linda.
Meu bisavô veio ao Brasil, em definitivo, em 1896 quando desembarcou no porto de Santos já com a esposa e sua primeira filha Linda, que se tornaria minha avó.
O porquê da escolha da cidade de São Manuel, não se sabe, mas se supõe também que teria sido porque a cidade, na época, era importante no cultivo do café e tinha uma alta concentração de grandes latifúndios e consequentemente de muitos imigrantes italianos que trabalhavam nas lavouras de café, o que atendia aos seus anseios de propagação política libertária.
A Casa Ricchetti sempre foi uma grande loja, tipo magazine, ou seja, uma casa comercial onde se encontrava toda sorte de material. Pode -se dizer que, guardadas as devidas proporções, era uma loja do tipo do inesquecível “Mappin”.
Além da loja comercial a família tinha também, na parte de trás da loja, uma área industrial que consistia na tipografia que imprimia livros e confeccionava impressos em geral e a nobre redação onde se editava e imprimia o jornal “O Movimento”, pois jornalista que também era, meu bisavô o havia fundado em dezembro de 1901.
Outro fato curioso, na história da família, é sobre a formação da primeira banda de São Manuel. Meu bisavô, à época, havia importado da Itália, por sua conta e risco, todos os instrumentos necessários para sua implantação.
Quando a importação chegou ao porto de Santos e ele foi retirá-la, teve uma grande surpresa: todos os instrumentos haviam sido apreendidos, porque os fiscais da alfândega desconfiavam da enorme quantidade e variedade de instrumentos num só embarque, o que não era comum naquela época.
Meu bisavô então argumentou junto aos fiscais que como maestro, estava criando uma banda e para poder provar a veracidade dos fatos, pegou um a um, cada um dos instrumentos e começou a tocá-los na frente dos fiscais, entoando o hino nacional brasileiro.
Após essa demonstração os instrumentos foram liberados e a banda pôde, desde então, com o maestro Ricchetti a sua frente, fazer suas apresentações de valsas e músicas clássicas, no lindo coreto do jardim municipal.
Aquela recordação da história da banda me leva a me ver ali, sentado num banco do coreto, ouvindo uma música, que toca o meu coração. Logo percebo que é a mesma música que minha bisavó cantava sempre, “Merica,/ Merica”, a tradicional música que todos os imigrantes italianos cantavam, durante a viagem de navio, em busca de uma nova vida na América.
“Dalla Italia noi siamo partiti, Simao Partiti col nostro onore, trentasei gioni di machina e vapore e nella Merica siamo arriva…… Merica, Merica, Merica,
cossa saràlo ‘sta Merica? Merica, Merica, Merica, un bel mazzolino di fior”
– “Da Itália nós partimos, partimos com nossa honra, trinta e seis dias de carro e navio e na América chegamos…. América, América, América que coisa será esta América? América, América, América, é um belo buquê de flores!”-
Sou tomado por uma forte emoção e fico então imaginando todos aqueles italianos deixando sua terra natal, suas famílias, deixando para trás praticamente tudo, mulher, filhos, tradições e partindo em busca de uma nova pátria, uma nova vida, em um lugar que os acolhesse e lhes a oportunidade de trabalhar e ter uma vida decente.
Era uma viagem, em que mesmo sem estar dentro das malas ou dos seus baús vinham também junto com cada um deles os seus conceitos, suas ideologias, suas atitudes, seus sonhos, seus ideais, seus valores, seus sentimentos, suas fantasias, seus amores, suas saudades e mesmo até os seus ressentimentos.
A música soava como uma grande homenagem aos italianos que ajudaram a construir este nosso país e para lembrar da linda mistura de raças que ocorreu no Brasil, tendo como ponto de partida os valentes imigrantes italianos.
Enquanto estou ali ouvindo e cantarolando o final da música, percebo que alguém bate levemente no meu ombro, me volto e – Meu Deus! é o meu bisavô!…….Como seria isso?
Ali naquele momento, não sabia se tudo aquilo estava sendo possível por uma identidade de almas ou pelos laços do coração ou talvez porque nossos espíritos comungavam fatos da nossa vida em comum, mas o fato é que meu bisavô, me abraçou fortemente, me deu um beijo em cada uma das faces e me segurando pelos ombros, olhou fixamente nos meus olhos e disse:
– Caro nipote, dica tutti i miei discendenti che li amo tutti e vorrei che ricordassero sempre questo detto della nostra famiglia:
-“Quando le radici sono profonde non c’è motivo di temere il vento!”
-Querido neto, diga a todos os descendentes que amo a todos e que gostaria que se lembrassem sempre deste ditado da nossa família:
-“Quando as raízes são profundas não há razão para se temer o vento!”
Não consegui evitar que, que as lágrimas escorressem pelo meu rosto. Percebi que meu bisavô, tentava também disfarçar seu choro enxugando a sua fronte com um lenço branco, que havia tirado do bolsinho da lapela.
Em seguida subo no carro novamente, ligo a chave e pego de volta a estrada dos sonhos…..
Consigo ainda dar uma última olhada pelo retrovisor e ver que as casas de São Manuel já estão distantes, diminuindo de tamanho, mas num último olhar, ainda vejo meu bisavô, em pé, parado em frente à Casa Ricchetti, ali na Av. XV de Novembro.
-“Ogni uomo non è sempre dove abita, ma dove ama”
-“Todo homem está sempre, não onde ele mora, mas onde ele ama! “

SOBRE O AUTOR:
José Luiz Ricchetti, nascido em São Manuel, é oriundo de famílias das mais tradicionais da cidade como Ricchetti, Ricci e Silva, é casado e tem 3 filhos. Engenheiro Mecânico pela Escola de Engenharia Industrial – EEI, com pós-graduação na FGV em Administração de Empresas e Comércio Exterior, tem MBA na área de Gestão de TI e Telecom pelo INATEL-UCAM, tendo atuado por mais de 35 anos, como executivo de grandes empresas brasileiras e multinacionais no Brasil e no Exterior.