
Tempo, tempo, tempo…. lá se vão os muitos anos, quando eu adolescente, talvez com quinze ou dezesseis anos, ano de 1968, curtia minha terra natal, cidade pequena do interior de São Paulo, que nessa época já começava a viver grandes mudanças, de região das grandes fazendas de café para enormes áreas de canaviais, transformação dos colonos em boias-frias e substituição dos tradicionais armazéns de secos e molhados para as grandes redes de supermercados.
Sempre aos sábados por volta das 23 horas, fosse uma noite quente de verão ou noite fria de inverno, não importava, tínhamos o compromisso sagrado, de nos reunir com os amigos de infância, no entorno do jardim, em frente a um dos bares mais antigos da cidade, para tomarmos algumas cervejas, uns goles de cachaça ou então sair para fazer serenatas.
Esses nossos encontros aos sábados, com a turminha de amigos, só se dava após, termos todos nós, cumprido o nosso ritual, quando levávamos as namoradas para o cinema e depois as deixávamos todas em suas casas, na certeza de que ali estariam seguras e intocadas, não sem antes, é claro ter dado alguns beijos e abraços na esquina próxima de suas casas, pois os pais não podiam ver ou as vezes nem mesmo saber…
Uma coisa que sempre caracterizava os grupos de adolescentes da nossa cidade natal, nas várias faixas de idade, era a grande diversidade socioeconômica das famílias de origem. Nosso grupo de amigos em particular, tinha desde filhos de pequenos comerciantes, de empresários, de vendedores de bilhetes, de fazendeiros, de médicos, de advogados, de atacadistas de café, de professores, de gerentes de banco e diretores de escola, de farmacêuticos, etc…
O bacana de tudo isso é que essas diferenças socioeconômicas nunca geraram preconceitos, nunca foram sentidas ou nos impediram de cultuarmos uma grande e sólida amizade que perdura até hoje, com reencontros periódicos ao longo dos anos.
As vezes penso como éramos uma geração diferenciada que se preocupava realmente muito mais com o ser do que com o ter. Imagino eu, hoje, que uma das causas seja talvez, porque não tínhamos na época essa obsessão pelo consumismo que vemos no atual mundo globalizado.
Voltando aos nossos encontros de sábado a noite, as vezes o “esquenta” para usar uma linguagem dos nossos dias, era feito ali mesmo, no pátio da Igreja Matriz, quando alguém “descolava”, um litro de cachaça ou conhaque, muito embora na maioria das vezes a gente preferia mesmo era tomar umas cervejas, acompanhada de um “rabo de galo” ou “fogo paulista” no reservado de um daqueles bares da região do jardim da cidade. Os preferidos eram o bar de um japonês, senhor que apesar de muito sério, não se furtava em vender bebidas, para nós, menores de idade, ou então num outro bar, de um português extremamente simpático e brincalhão, cuja bar de esquina era conhecido como colonial, embora de colonial não tivesse absolutamente nada!
Depois de tomar umas e outras e com todo mundo já calibrado, como dizíamos na época, e assegurado que a turma que tocava o violão estivesse presente e com os devidos instrumentos afinados, embora aquilo, com o nível alto da cachaça, já tivesse deixado de ser importante, lá íamos nós para as nossas serenatas etílicas, em homenagem a todas as meninas preferidas do colégio.
A rota a ser cumprida pela serenata era definida de forma democrática e não era aprovado, sem algumas discussões, sobre por onde a seresta tinha que começar ou passar.
Por vezes o critério de escolha da rota era definido pelas matérias de colégio, tal como: -“olha pessoal hoje primeiro vamos passar na casa do professor de matemática, depois na casa do professor de física, etc….” obviamente que o objetivo não era lembrarmos dos nossos professores, mas sim de suas filhas, que faziam parte da nossa lista de paqueras.
Outras vezes o critério envolvia localização geográfica, como que se tivéssemos todos à época, munidos cada um com seu smartphone e “waze” ligado: – “vamos passar primeiro na Epitácio Pessoa, depois na XV de Novembro, depois na Gomes Faria, e assim seguíamos montando o roteiro de ruas onde moravam as nossas musas adolescentes.
Vez por outra o critério sugerido caminhava pelas características físicas das meninas, que hoje, com a tolerância zero para tudo, talvez fosse considerado um critério altamente machista ou de “bullying”, mas que na época era simplesmente uma coisa normal de um grupo de adolescentes. Este último critério entrava nos detalhes mesmo e era como se estivéssemos todos num júri de programas dominicais da TV: “primeiro passamos na casa daquelas duas morenas …. lá na 4 de junho, depois vamos na casa da moreninha dos olhos verdes ali depois da Igreja, aí seguimos para a morena perto do mercado e depois vamos para o lado da rodoviária, onde está a “namoradinha do amigo meu”, apelido que tínhamos dado a uma das nossas colegiais, uma loirinha linda que namorava um amigo nosso. O apelido era uma referência a uma conhecida música do Roberto Carlos, nosso ídolo da Jovem Guarda que dizia na canção: “Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu…..” e assim definíamos o nosso caminho da seresta.
Após as democráticas e ecléticas discussões e definida finalmente a rota, saíamos nós, noite adentro, sempre acompanhado do nosso inseparável amigo poeta, moço mais velho, cujo segundo nome duplo, o pai tinha se inspirado em senadores romanos, talvez imagino eu, querendo com o nome influenciar o filho, no futuro, para se tornar um grande orador. Mal poderia ele imaginar que a filosofia seria substituída pela poesia na mente desse nosso prezado amigo.
Esse nosso querido poeta, tinha já algum tempo, apesar de bem mais idade que todos nós, se tornado aquele amigo inseparável que nos acompanhava em praticamente tudo, desde as nossas viagens de férias a Santos ou à alguma fazenda da região, passando pelas nossas bebedeiras memoráveis, pelos blocos de carnavais, pelos jogos de cacheta, pelas partidas de sinuca até claro as serenatas, sempre com suas declamações apaixonadas de poemas que não só coloriam, mas davam aquele lastro poético e romântico aos nossos eventos, fazendo com que ganhássemos mais pontos, na reputação com as lindas colegiais.
O nosso “Vinícius de Moraes” tinha um vasto repertório de poesias, mas tinha uma delas em especial que sempre estava presente nas nossas serenatas. A poesia se chamava “Éramos três” e me lembro claramente que ele sempre gostava de mencionava o autor, o poeta Olegário Mariano, talvez com a intensão de reafirmar o seu conhecimento do mundo da poesia.
Até hoje, ainda, vez ou outra, me surpreendo declamando mentalmente seus versos: “Éramos três em torno à mesa, três que a vida na sua trama de ilusões urdidas, juntou no mesmo afeto e na mesma viuvez….um músico, um pintor e um poeta. Éramos três…. “
Aí é claro e inevitável me bate a saudade desses bons tempos, das nossas serenatas, da nossa turminha e em particular desse nosso grande amigo que cedo se foi.
Dessa adolescência intensa e das nossas noites de serenatas, me recordo em particular de uma…
Lembro como se fosse hoje que era uma noite de inverno, o vento frio do inverno nos castigava, a temperatura beirava os 10° C e uma leve garoa caia sobre a nossa querida cidade, e lá estávamos nós reunidos, o “afinado” e descolado grupo, demonstrando às garotas os dotes musicais e poéticos. Desta feita estávamos em frente à casa do professor de física, que contribuía claro, com suas 3 filhas, na nossa lista de gatinhas colegiais.
Nosso amigo, “beatlemaníaco” dedilhava o seu violão, e fazia fundo com uma balada dos Beatles enquanto o nosso poeta declamava sua poesia preferida: “Éramos três”, mais atrás o “back vocal” formado pelos demais do grupo, em verdadeiro coro etílico, tentava acompanhar, com sons de boca o ritmo da canção.
Foi então, enquanto a luz do corredor da casa do professor acendia e apagava, sinal que as nossas meninas sempre se valiam, para nos avisar que estavam ouvindo, mas que por razões paternas não podiam abrir a janela ou a porta, que, de repente fomos interrompidos pela sirene estridente de um “Camburão” da polícia, nome que à época se dava para a perua veraneio que fazia a ronda policial na nossa cidade.
Ainda hoje me recordo da cena do Camburão, dobrando repentinamente a rua, com sua sirene ligada, luzes acessas, a toda velocidade, tendo à frente, com a cabeça para fora da janela, o “Sargento Garcia”, apelido que tal figura policial pitoresca, tinha em nossa cidade, não só pela sua semelhança física, como também principalmente pelos vários outros fatos que já tinha protagonizado ao longo da carreira, e que tão bem tinham sido caracterizados pelo personagem homônimo na série de cinema “O Zorro”, que assistíramos todos, ainda garotos, no velho cinema da cidade.
A chegada do camburão com o Sargento Garcia e sua equipe, foi tragicômica, com alguns de nós debandando assustados em disparada, para todos os lados, uns pulando muros, alguns correndo pelas ruas contíguas, outros se escondendo no Santuário ou na vizinha horta do seminário de padres. Parecia uma corrida de baratas quando se acende uma luz repentina de um velho porão.
O Sargento Garcia, então, depois de demorar uns 5 minutos para conseguir sair do Camburão, de lanterna em punho, camisa aberta mostrando sua vasta barrida, quepe torto na cabeça, todo mal-ajambrado, como se tivesse saído da cama àquela hora, esbaforido gritava: -“Prendam os meliantes! Prendam os meliantes!”
Seus auxiliares, guardas não menos, atrapalhados e fisicamente foras de forma, corriam para um lado e para outro, desesperados, tentando, a todo custo, com seus “corpos atléticos”, capturar adolescentes no auge do seu vigor físico.
Nesse corre-corre, alguns dos nossos guardiões da seresta, entre correr e ficar resolveram ficar e se esconder na varanda do professor e assim, após serem facilmente pegos pelos faróis do Camburão foram capturados pela eficiente equipe policial. Nesse grupo de capturados se incluía nosso violinista, flagrado em pé contra a parede da sacada, abraçado firmemente ao seu inseparável violão e mais 2 ou 3 se bem me recordo. Imediatamente o Sargento Garcia, ordenou a sua equipe de eficientes policiais que colocassem os jovens “playboys” presos no camburão e rumassem para a delegacia local!
Descobrimos algum tempo depois, que o denunciante, tinha sido um vizinho insensível, que havia chamado a polícia e denunciado a “bagunça absurda dos playboyzinhos”, com certeza porque não tinha a sensibilidade suficiente para entender o que era uma serenata juvenil ou porque ouso imaginar hoje, estivesse talvez tal vizinho irritado mesmo com sua insônia e a negativa da esposa, que usando expressão da época, devia estar dormindo de calça jeans…
Na delegacia, onde os estavam os pais dos jovens chamados pelo então delegado, que ainda de paletó de pijama, totalmente descabelado, pois havia sido acordado pelo célere sargento, se mostrava extremamente irritado e contrariado, não pela serenata juvenil, mas sim por ter que, em plena madrugada, atender uma ocorrência ridícula, que havia sido levado a cabo pelo seu diligente e sagaz sargento.
Assim na frente de todos, o delegado furioso, deu uma descompostura geral no sargento e sua equipe de guardas, pela impropriedade da infeliz captura dos “meliantes” e dispensou todos os seresteiros juvenis, pedindo mil desculpas aos pais ali presentes.