COLUNA DO RICCHETTI – O ‘Vai e Vem’ do coração

Foi ali, no ‘Vai e Vem’ das alamedas do jardim central de São Manuel, que o coração da cidade aprendeu a bater. Entre o Coreto e o Chafariz, entre a dama-da-noite e o som das retretas aos domingos, não se aprendia apenas a andar ou a correr com os amigos — aprendia-se a viver.

O jardim era mais do que um espaço verde. Era um tempo suspenso. Era onde as famílias se formavam, onde os bancos contavam histórias gravadas em granilite, com os nomes de armazéns, lojas e comerciantes que doavam não apenas cimento e pedra, mas carinho por sua cidade. Era onde os rapazes se postavam nas bordas da alameda com seus cigarros fingidos, esperando o flerte inocente das moças que desfilavam com seus vestidos rodados, entre passos tímidos e sonhos em construção.

Esse ritual, esse ir e vir silencioso e cheio de significado, ficou conhecido como o ‘Vai e Vem’. Mas era mais do que uma expressão: era um código social, uma dança sutil entre olhares e futuros possíveis. Foi ali que surgiram namoros, noivados e até casamentos. Foi ali que muitos pais um dia levaram seus filhos para mostrar onde o amor começava com um passo em direção à calçada do outro. Foi ali que a maioria das famílias, que ajudaram a construir São Manuel, se formaram.

Bem no centro desse ritual delicado, jorrava uma fonte adornada por uma carranca — não por acaso chamada Ponto de Encontro. Era ali que as gerações se reuniam, que os olhares se descobriam, que a vida acontecia ao redor da água corrente, símbolo milenar das praças públicas.

Essa fonte não era apenas enfeite. Era presença. Era inspiração para a socialização da comunidade. Desde o século XIX, as fontes foram integradas aos projetos urbanos como espaços de lazer, contemplação, cultura e afeto. Onde há fonte, há permanência. Há pausa. Há gente.

Hoje, porém, ouço dizer que querem transformar o ‘Vai e Vem’ e o ‘Ponto de Encontro” em uma rua de food trucks. Sim, food trucks. Como se bastasse fritar batatas e servir hambúrgueres para substituir a história. Como se a alma de uma cidade pudesse ser trocada por óleo quente, ketchup ou mostarda.

Não sou contra modernidades, nem contra quem precisa trabalhar, longe disso. Meu compromisso maior é com a história e existem espaços sagrados que pedem reverência. O coreto, os bancos doados, o caramanchão florido, nossos antigos casarões — todos eles são capítulos de um livro que não se deve nunca rasgar. O jardim de São Manuel não é apenas um jardim: é o útero onde nasceu a identidade de um povo.

No filme ‘Muito Além do Jardim’ que me inspirou nesta lembrança, o personagem Mr. Chance, interpretado pelo fantástico ator Peter Sellers diz ao Presidente dos Estados Unidos: ‘Outono e Inverno. Depois, Primavera e Verão.’ Falava de jardins, mas foi entendido como um ensinamento sobre ciclos e esperança.

Talvez o nosso jardim também precise disso: uma chance.

Uma chance de ser cuidado, restaurado, não reformado com pressa. De ser compreendido, não adaptado ao gosto de quem, talvez, não conheça a sua maravilhosa história. De ser respeitado, não mutilado.

Porque destruir o ‘Vai e Vem’ é mais do que alterar uma alameda — é interromper a circulação de uma memória viva. É calar o murmúrio das gerações que ali se encantaram. E, sobretudo, é esquecer que há tradições que, como as raízes das árvores mais antigas, sustentam a vida que ainda pulsa na cidade.

Os grandes generais da história foram sempre aqueles que souberam a hora certa de recuar, para depois ganhar as batalhas, pois nem sempre avançar é a melhor opção, às vezes recuar é a chave para a vitória.

Ainda há tempo de recuar. Ainda há tempo de ouvir. Ainda há tempo de lembrar.

Outono e Inverno… depois, quem sabe, Primavera e Verão.

José Luiz Ricchetti – 12/05/25

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