
Ah, São Manuel! Cidade de gente simples, ruas calmas de paralelepípedo e personagens que dariam pano pra toda a Jovem Guarda costurar suas canções mais ousadas.
Era 1965. A Jovem Guarda tomava conta da televisão brasileira e também dos corações das moças e dos topetes dos rapazes. Roberto Carlos estava no auge com seu “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, acompanhado de Erasmo Carlos e da inconfundível Wanderléa, a Ternurinha nacional. Era tanta ternura que até os galos da cidade começaram a cantar “O Calhambeque” às seis da manhã.
Pois bem. Eis que a trupe real do iê-iê-iê resolve excursionar pelo interior – e São Manuel, claro, estava no roteiro. O show seria no ginásio de esportes, o mesmo onde a gente jogava peladas com bolinha de meia e perdia dente sem anestesia.
E agora entra nosso herói: Zé Casseteiro.
Zé era o tipo de figura que a gente não encontra mais hoje em dia. Trabalhava arrumando calçadas, tinha as mãos mais grossas que sola de tamanco e um humor que variava entre o impróprio e o impagável – às vezes os dois ao mesmo tempo.
Naquele dia fatídico, Zé estava agachado, martelando pedras com a calma de um monge zen quando, de repente, um carrão vermelho, conversível, barulhento parou roncando na frente da praça. Parecia nave espacial, com aquele ar todo misterioso e cheio de “glamour de artista”.
O problema – ou a bênção para os que gostam de boas histórias – é que quem desceu do carro era ninguém menos que Roberto Carlos e sua trupe real, Erasmo, Wanderléa e alguns seguranças, todos de botinhas com ‘salto carrapeta’, roupas floridas, padrão jovem guarda, cheias de babados, que pareciam meio que puxadas para o feminino e bem ousadas para uma visão de um caipira do interior.
Zé, que nunca teve papas na língua (nem no cérebro), olhou aquilo, levantou o queixo e bradou com a segurança de quem sabe tudo e sobre tudo:
– Aêêê, Viadoooos!
A frase ecoou. Paralisou pombos, crianças, beatas e até um vendedor de pipoca que desistiu de tocar sua corneta.
Hoje, isso renderia processo, acusação de homofobia, assédio moral, cancelamento e talvez até linchamento virtual. Mas nos anos 60, nossos anos dourados, essas “brincadeiras de mau gosto” se resolviam no braço – ou no esquecimento, depois de uma boa cerveja no bar da praça.
Dizem que Erasmo arregalou o olho, Wanderléa deu risada abafada e Roberto, bem… Roberto olhou com aquele jeito de quem não entendeu, mas entendeu, e apenas ajeitou a gola da camisa de babado com toda sua majestade azul real.
O Zé? Entrou no cassete. Literalmente.
Dois dias depois, já havia virado lenda urbana, piada de bar, música improvisada no coreto da praça e até nome de sanduíche no Bar Colonial: “Bauru Zé Casseteiro – com pimenta e sem noção”.
Até hoje, os mais velhos juram que Roberto nunca mais voltou a São Manuel com medo de outro grito profético do Zé. Outros garantem que, tempos depois, o Rei compôs “Detalhes” pensando nele: “São coisas muito pequenas, mas que o tempo não apaga…”
E se você passar por uma calçada torta na cidade, cuidado: pode ter sido obra do Zé Casseteiro. E, com sorte, ainda tem eco daquele grito lendário preso entre os paralelepípedos da história.
José Luiz Ricchetti – 10/07/2025