
Hoje é aniversário de São Manuel.
E como sempre, o dia amanhece com cheiro de terra molhada, mesmo que o céu insista em ser azul. Há um pacto silencioso entre a cidade e o tempo. Aqui, o tempo não passa… ele estaciona, então senta no banco da praça, cruza as pernas e acende um cigarro imaginário enquanto observa a vida seguir no ritmo das badaladas da Matriz.
São Manuel é feita de ruas de paralelepípedo que guardam segredos nas calçadas. De casas antigas com janelas que já viram de tudo: namoros escondidos, despedidas sem volta, promessas feitas e desfeitas antes da próxima estação.
É uma cidade onde o passado não se contenta em ficar quieto nos álbuns de fotografias. Ele caminha de mãos dadas com o presente, atravessa a Rua XV de novembro, toma um café no Ponto Chic, passa pelo prédio do lendário Cine São Manuel que insiste em existir dentro das nossas lembranças, mesmo que as poltronas já não estejam mais lá.
Aqui, todo mundo já foi criança no mesmo lugar. Já pulou a banda no coreto, já subiu a ladeira da Batista Martins correndo, já tomou guaraná ‘princesinha’ no Bar Colonial, já lambeu um sorvete do Chiquinho, já dançou na Patota, já ganhou presente da Casa Ricchetti, já esperou o trem que nunca mais passou. Já jogou futebol no campinho de terra ao lado da ponte da Santa Helena e já brigou com o vizinho por causa de bola na vidraça. Já pulou o carnaval e dançou nos bailes do Clube Recreativo.
São Manuel é um lugar onde os fantasmas têm endereço fixo. Estão na torre da igreja, nos porões das casas centenárias, nas esquinas mal iluminadas e nas histórias contadas à meia-luz, com mais exagero do que verdade – mas quem se importa com a verdade quando a poesia mora ali, ao lado?
Tem também o Portal. Ah, o Portal… Aquele que só os iniciados conseguem enxergar. Dizem que ele fica atrás da velha estação ferroviária, mas eu sei – e você também sabe – que ele pode abrir em qualquer lugar: numa conversa despretensiosa, num reencontro inesperado, ou até no olhar de alguém que não vemos há décadas.
E como esquecer os inúmeros personagens e famosos?
O filósofo Tuffi, com suas frases que desafiavam a lógica e abraçavam a infância.
O nosso barbeiro mentiroso, o escovinha e o nosso major cada um com seu caso do bilhete ou do guim-guim premiado.
O Colé… cozinheiro da Kibrasa, que temperava a vida com pimenta, risadas e uma coragem de se assumir, que muitos não tinham naquela época.
O Zéferino, debaixo das traves, defendendo não só bolas, mas os sonhos de uma cidade inteira e o Tales nos ensinando a dar dribles no campo e na vida.
Sem falar no nosso fantasma, autor da conhecida lenda de ter jogado praga na cidade, escondido nas entrelinhas do tempo, rindo baixinho de quem pensa que controla o destino da cidade.
São Manuel é isso: um cenário de causos, de risos, de lágrimas, de política de esquina, de fofoca de padaria, de saudades que não cabem no peito.
É a cidade aonde a gente vai embora… mas nunca vai de verdade. Porque mesmo longe, a gente carrega São Manuel dobrada dentro do bolso, como quem leva um bilhete antigo, um retrato amarelado ou o cheiro de pão saindo do forno.
Hoje, no aniversário da cidade, fico aqui pensando: será que o tempo vai nos levar um dia? Talvez leve o corpo, mas jamais levará o que fomos aqui. Porque São Manuel é isso… uma eterna tarde de domingo, com gosto de infância e promessas de eternidade.
José Luiz Ricchetti – 17/06/25