
Pouco minutos haviam se passado, desde que alçamos o inexplicável e louco voo do centro de Capivari. Ainda assustado, quando dei por mim, lá estava eu sentado naquele Ford 46 tentando ainda administrar a avalanche de pensamentos que invadia minha mente.
Era como se um filme começasse a passar sobre aquela fantástica época da minha adolescência e das inúmeras aventuras que tinha vivido com um carro similar aquele.
A primeira coisa que me lembrei foi que, aquele carro Ford, em que eu estava agora, era exatamente do mesmo ano e modelo do carro que sempre nos acompanhou, a mim e meus amigos de infância, nas extraordinárias aventuras dos anos 60, os famosos anos dourados, na nossa pequena e linda cidade paulista de São Manuel.
Sempre me foi impossível esquecer do ‘Fordão’, apelido carinhoso que nossa turma, tinha dado a ele. Aquele Ford 46, preto, foi muito mais que um simples elemento que participou das nossas aventuras. Ele foi, não só coadjuvante de cada uma delas, mas, posso dizer que ele se tornou a quinta-essência da nossa adolescência e nos complementava, de alguma forma, com suas quatro rodas e enorme espaço interior.
Ainda absorvendo o que tinha acontecido e perdido nesses pensamentos de outrora, olhei pela janela e quando dei por mim, percebi que estávamos sobrevoando exatamente a minha cidade natal. Olhei para o painel e ele me mostrava que era 1970, ano do centenário de São Manuel.
Assim que vi as movimentações das pessoas e enfeites das ruas, concluí que estávamos em pleno período de carnaval. Identifiquei logo o local em que rapidamente estávamos aterrissando. Era bem em frente a Patota, um bar e ‘point’ famoso, que frequentávamos nos anos 60/70.
Logo, a minha memória trouxe as melhores recordações desse período, e vários acontecimentos passados, como um rebobinar para trás de um filme, começaram a brotar um a um nos meus pensamentos…
Aquele bar chamado Patota, tinha, no seu início de funcionamento, as ‘brincadeiras dançantes’ nos finais de semana, mas depois acabou por se transformar em um bar tradicional, com suas mesas de bilhar, mesas essas, que aliás, consumiram boas, deliciosas e irresponsáveis horas da minha adolescência.
Exatamente nessa época, o meu grande amigo de infância Zezão, que era grande não só no tamanho, mas principalmente no coração, é quem tinha o Fordão, esse nosso coadjuvante e testemunha do tempo.
A família do amigo Zezão tocava um pequeno comércio de secos e molhados, ali na rua Morais Gordo, lembrando que ‘Secos e Molhados’ era como se denominava, nessa época, as casas comerciais que vendiam gêneros alimentícios em geral.
O velho Ford, já bem estragado pela má conservação, era praticamente utilizado só para fazer entregas das mercadorias, aos inúmeros clientes das colônias, condomínio de casas de trabalhadores das grandes fazendas de café, que prosperavam nessa época, período áureo da cultura cafeeira, na nossa região.
Aquele pequeno armazém, situado numa esquina de uma rua pacata, que terminava praticamente na porta do Campo de Futebol e do Tênis Clube, era para todos nós um mistério de sobrevivência, isso porque, não aparentava ter um grande movimento comercial no dia a dia, que justificasse ficar em pé, economicamente.
Esse detalhe levou, anos mais tarde, um outro amigo e craque de bola, o Cícero, quando se tornou economista, a ter a ideia de escrever uma tese de economia, baseado naquele pequeno armazém. Ele sempre nos dizia:
‘Turma, isso dá uma fantástica tese de doutorado. Como será que aquele pequeno armazém quase sem movimento e com tão poucos produtos, pode se manter aberto? Se descobrir isso, vou ganhar na certa o prêmio Nobel de Economia! ‘Complementava ele, sempre em tom de brincadeira
Mas, e o nosso Fordão? Digo ‘nosso’ porque se tornou, com o passar do tempo, muito mais propriedade nossa que do seu verdadeiro dono, o pai do grande amigo…
Bem… ele continuava a sua saga conosco, a passos largos, ou melhor ‘a pneus carecas’, pois sua conservação era bastante precária. Para nós adolescentes, essa má conservação nunca foi importante, porque, mesmo sendo malcuidado, bastava simplesmente girarmos a chave ou empurrá-lo ladeira abaixo, na direção da “Mina do Lima”, para que o motor pegasse e nós, um bando de moleques adolescentes, déssemos fantásticos ‘rolês’ pela cidade.
Aliás, tínhamos um truque infalível, quando sua bomba de gasolina teimava em esquentar e querer estragar nossas aventuras. Pegávamos uma lata de ‘Parquetina’, cera para assoalhos de casa, marca comum nessa época, fazíamos um rasgo lateral e um furo no centro, a enchíamos de estopa molhada e envolvíamos a bomba de gasolina.
Isso ajudava no resfriamento da bomba e pronto, lá estávamos nós de novo, com o nosso teimoso carro na ativa, mesmo que rateando, pelas subidas e descidas da nossa cidade.
Para poder ter ele ‘emprestado’, ficávamos normalmente esperando que o armazém terminasse suas entregas e o pai do Zezão, o estacionasse numa rua lateral ao armazém, perto do rio Paraiso, pequeno e famoso rio que cortava a nossa cidade. Essa era a hora certa de correr, pegar escondido a chave e Vupt!!!, dar as nossas voltinhas pela cidade.
Não é preciso dizer que tudo era feito de modo que ninguém nos visse ou autorizasse, e cá entre nós, essa era a parte mais gostosa da aventura e o que nos deixava com a adrenalina a mil.
O nosso grande amigo Zezão se foi muito cedo e o curioso é que nunca soubemos, e acho que nenhum de nós lhe perguntou, como ele se entendia com o pai, depois das nossas escapadas com o Fordão. Nunca soubemos se apanhava, se ficava de castigo ou se tinha que pagar com horas extras de trabalho no armazém, fazendo entregas em função daqueles nossos passeios de carro.
Numa dessas vezes, em que aguardávamos a oportunidade para pegar o nosso ‘bólido’, sua avó, grande matriarca da família, teimava em não sair da frente do portão, nos fundos do armazém, vendo o movimento da rua ou quem sabe, até permanecendo ali mesmo, só para atrapalhar mais uma das nossas aventuras.
Aquela situação já nos tinha deixado totalmente impacientes e irritados, quando aponta na esquina o ‘Galo’, um velho conhecido nosso, fiel escudeiro do ‘Seu Jorge’, zelador da piscina do Tênis Clube. O Galo era muito conhecido na cidade, porque era ele quem, mensalmente, passava de casa em casa, cobrando os boletos da mensalidade do clube.
Não me recordo exatamente quem, mas me lembro que um de nós, teve uma brilhante ideia e disse ao amigo Zezão:
— Olha aqui Zezão, vamos fazer o seguinte: você se esconde… pedimos para o Galo perguntar à sua avó se você está em casa. Quando ela entrar para procurá-lo, Zaz!!! vamos lá e pegamos o Fordão!
Combinado assim com o Galo, que topou nos dar a devida cobertura, se dirige então à querida vovó, dizendo:
- Oi Vó, tudo bem? Eu sou o Galo, amigo do seu neto ‘Zé Galinha’, ele está? (‘Zé Galinha’ era o apelido pelo qual o Galo e outros amigos seus, moradores da Rua XV de novembro, o chamavam).
A nossa vovó, já conhecida por todos, pelo instável humor, sem falar mais nada, pegou a vassoura de piaçava, que segurava numa das mãos e sem dar qualquer tempo ao Galo, foi logo mandando ver, com o cabo de vassoura na sua cabeça, gritando: - Saia daqui seu moleque! Aqui não tem Galo nem Galinha!
Depois dos risos, daquela roubada e de procurarmos conter a raiva do nosso amigo Galo, ficou claro que não tivemos mais como dar nossas voltinhas, naquele memorável dia….
Para muitos de nós, foi o Fordão que nos permitiu ter o primeiro contato com a direção de um carro. Sua imensa ‘sala de jantar’, aquele espaço enorme na sua parte traseira, era também onde tomamos o primeiro ‘fogo’.
Lembro, especialmente, que numa tarde de sábado deste mesmo carnaval de 1970, por exemplo, quando estávamos em nove ou dez amigos, dentro daquele carro, pegamos uma estradinha de terra que levava à Aparecidinha, pequeno distrito da cidade, e paramos em frente a uma tradicional mina de água, no meio do caminho. Nosso objetivo era começar o ‘esquenta’ para a nossa primeira noite de carnaval.
Consumimos ali, em pouco tempo, um garrafão de vinho ‘Sangue de Boi’, aquele ‘finíssimo’ vinho de mesa, doação especial do próspero armazém da família do nosso amigo Zezão, para as nossas festividades carnavalescas. Não é preciso dizer que ficamos todos embriagados.
Como tínhamos, naquele ano, formado um bloco de carnaval, o ‘Bloco do Havaí’, no começo da noite deveríamos nos reunir, todos antes do baile, no grande sobrado de um dos amigos, o Rubinho Pegoraro, cujo pai era gerente do Banco do Brasil da cidade.
Lá chegando, nossa grande dificuldade foi conseguir o ‘alvará de soltura’ para que ele nos acompanhasse ao baile, pois bêbado como um gambá, fruto daquela tarde, regada a extrato etílico de uva, mal conseguia parar em pé.
Seu pai, exigia que o filho permanecesse em casa e fosse dormir, o proibindo de ir de qualquer maneira ao baile. Como não houvesse acordo, com o rígido patriarca, a nossa saída foi, disfarçadamente, utilizando uma escada de madeira emprestada do vizinho, resgatá-lo através da janela do seu quarto.
O Fordão era também imprescindível, quando queríamos fazer bonito e paquerar as ‘meninas de fora’, ou seja, visitar as fazendas onde as garotas, filhas ou sobrinhas dos grandes fazendeiros vinham passar suas férias de verão, na cidade, em especial nos períodos de carnaval. Aquele estilo antigo e cheio de classe do nosso carrão, penso eu, acrescia a nós adolescentes do interior um ar meio retrô, que devia impressionar aquelas ricas meninas paulistanas.
Se era bem isso eu realmente nunca tive certeza, mas que dava certo dava, até porque sempre conseguíamos engatar um namoro de férias com algumas delas!
O nosso Fordão também nos conduziu pelas estradas da Água Nova, na época, apenas um rústico clube de campo, em incontáveis vezes, para passarmos o dia na beira da sua represa, nadando e pescando. Foi também lá que curtimos muitas das noites regadas a um bom churrasco, muita caipirinha, cerveja e memoráveis partidas de truco.
Com certeza foi ele, esse nosso grande companheiro, o velho e malconservado Ford 1946, de motor forte e ronco indescritível, a grande testemunha da história dessas noites memoráveis, na Água Nova, em que ecoavam pela represa, noite adentro, junto com o coaxar dos sapos e rãs, aqueles nossos gritos etílicos de truco ladrão!
Nessas inúmeras aventuras com o Fordão pelas estradas de terra, rumo ao clube de campo, era praxe procurarmos garantir o nosso almoço ou jantar, amealhando um farto e bom menu pelo caminho. Isso era feito atropelando alguma galinha pela estrada ou ‘pegando emprestado’ algum peru ou uma leitoa de algum sítio das redondezas, para então levarmos e cozinharmos junto com batatas recolhidas do velho armazém do amigo Zezão e assim encerrarmos o nosso cardápio gratuito.
Certa vez o nosso Ford, por um pequeno erro etílico de percurso, amanheceu atolado dentro de uma plantação de milho, de uma fazenda próxima, fruto de pequeno ‘rent a car’ para um dos amigos, que necessitava urgentemente de um local para esticar a noite com uma antiga paquera.
Foi assim que no dia seguinte, por volta das 11 horas da manhã, o pai do Zezão, dono do armazém e do Fordão, recebe uma estranha ligação, do administrador de uma fazenda próxima, dizendo: - Meu amigo, desculpe incomodar, mas estou aqui, agora, na minha fazenda, da varanda de casa, vendo o seu velho Ford decorando o meu milharal!
- Posso ver também, um casal, acredito que bêbados, deitados no capô, pelados e tomando sol!
Depois deste escândalo e vexame, tivemos que nos virar para não só acudir o casal de amigos, mas, ainda arrumar um jeito de rebocar o Fordão para uma oficina e solucionar o velho defeito da bomba de gasolina.
O tempo voa, e no meio daquelas lembranças todas, percebo, que já se faz noite. Me vejo sentado ao volante do Ford, no mesmo lugar que aterrissamos, ali na frente da Patota, podendo ter a linda vista, bem na minha frente, do antigo relógio da torre do Paço Municipal.
Enquanto estou olhando para aquele fantástico relógio de quatro lados, começo ouvir as primeiras de suas doze badaladas. Faltavam minutos para a meia noite.
No painel do Ford começam a surgir uma sequência de luzes, vermelha, depois as amarelas… E logo aparece uma mensagem piscando, informando que o tempo de permanência naquele ano de 1970, estava se esgotando. Era preciso partir!
Seria porque, estávamos chegando ao final de um dos tais ‘buracos de minhoca’?
Percebo então que o carro começa a tremer e balançar novamente. A sua luz verde no painel se acende, ele ronca alto e forte e me joga contra o banco, enquanto arranca em desabalada carreira, pegando a subida da rua Gomes Faria, no sentido da Estação Ferroviária.
Já quase saindo do chão, ele faz então o contorno pela direita, na frente do bebedouro de cavalos, e Záz entra pelos trilhos da ferrovia sorocabana, no sentido da pequena parada de trem Igualdade e ganha altura, rapidamente, em alta velocidade, penetrando nas nuvens, que pairam acima da pequena torre da velha Estação.
Para onde ele vai? Será que irá me levar para uma outra época? Para que cidade? Que ano?