CRÔNICA: O FUNERAL DA CONDESSA

Ele tinha assumido o compromisso de providenciar o funeral da prima, descendente em quarta geração do tataravô, que tinha sido Conde e que tinha vindo ao Brasil junto com a família Imperial no início de 1808. Portanto a prima era uma Condessa de quarta geração!

Estar ali para atestar a morte, reconhecer o cadáver no hospital e depois começar a providenciar e organizar todo o resto dos preparativos para o sepultamento não era uma coisa que gostasse de fazer, mas como havia lhe dito uma amiga, alguém tinha que fazer…

Não era a primeira vez que fazia isso. Por várias outras ocasiões, ele já tinha desempenhado esse papel de encaminhar um ente querido para a última morada. Primeiro, havia sido o tio avô, depois, quase em seguida duas outras tias diretas, aí veio a própria mãe e a avó e logo depois o pai, mas era a primeira vez que faria isso para um parente que tinha laços com a família real portuguesa.

Desta vez ele se sentia até um pouco acanhado por se tornar, sem querer, um coadjuvante da própria história do Brasil, ainda mais que a Condessa era a última representante daquela família de nobres. A história da família que veio com D. Pedro se encerraria ali com o enterro da prima, a última descendente, pois era solteira e não tinha filhos…

Mas ele tinha assumido aquele compromisso consigo mesmo e, portanto, estava ali para desempenhar o seu papel. Assim andar, bem cedo, por aquelas alamedas desertas do cemitério onde a família da Condessa tinha um jazigo perpétuo, além da obrigação assumida já lhe era também familiar, até porque o túmulo dos seus pais era no mesmo cemitério.

Naquela manhã bem fria, temperatura estranha para um mês de janeiro, não era diferente das outras vezes em que tinha desempenhado esse papel. Chegou cedo ao cemitério e estacionou o carro na rua, a uns duzentos metros da entrada, ao lado das várias bancas de flores e caminhou, primeiro pela longa calçada beirando o muro do cemitério, até entrar pelo enorme e centenário portão de ferro da entrada principal.

Logo ao entrar deu de cara com os antigos mausoléus de famílias tradicionais de São Paulo, que era bem peculiar naquele cemitério e que já conhecia bem, para então virar à direita e pegar a primeira alameda perpendicular a rua principal que ele lembrava ser o caminho que levava ao túmulo da família da Condessa.

Ele queria ver se reconhecia o túmulo primeiro, ver o estado geral dele, antes de ir até ao escritório da Administração para realizar os procedimentos do sepultamento. Levantou a gola do paletó, que costumava usar nessas ocasiões, para se proteger do vento frio e começou a sua caminhada pela rua deserta do cemitério, enfrentando a garoa que começava a cair.

Andar por aquelas ruas desertas não era um passeio agradável, ainda mais naquela condição de preparar um enterro de um parente próximo, ainda mais sendo ela uma Condessa.

Mesmo assim, à medida que caminhava e avançava solitário pela longa alameda, podia ouvir o eco dos seus próprios passos, entre os vários túmulos. Aquela cena, digna de um filme de Hitchcock seria amedrontadora para qualquer pessoa, mas ele já estava acostumado com tudo aquilo…

Ao longo do caminho, quando já estava mais ou menos no meio da alameda, ouviu um barulho estridente, como um ranger de ferro, parecendo uma dobradiça de porta se abrindo e um calafrio lhe percorreu a espinha, da cabeça aos pés. Ao parar e começar a olhar no entorno, tentando identificar o barulho, sentiu como se alguém se aproximasse de suas costas… Olhou rapidamente para trás e não viu ninguém…

Decidiu continuar o seu caminho e sentiu um alívio ao perceber que o barulho estava vindo da porta de um dos jazigos, tipo mausoléu, bem a sua frente, que tinha sido aberto provavelmente pelo vento e que continuava batendo, abrindo e fechando. Seria algum espírito querendo se comunicar? Talvez…. aquela sensação como se alguém estivesse bem atrás das suas costas direcionava os seus pensamentos e era inevitável que pensasse em tudo isso naquele momento…

Passado o susto, continuou a sua caminhada, talvez, tendo por companhia, quem sabe, uma daquelas almas penadas que sempre habitam os cemitérios e querem conversar…

O vento frio e a garoa continuavam lhe castigando e a única coisa que lhe passava pela mente, naquele momento, era o questionamento que fazia a si mesmo do porquê aquelas coisas sempre aconteciam com ele. Seria a sua mediunidade?

A procura do túmulo fez com que rapidamente esquecesse daquelas ideias fantasmagóricas. Depois de andar por várias daquelas ruelas e alamedas, entrar por vielas, girando em círculos por vários túmulos, ele percebeu que tinha se perdido e que não iria conseguir encontrar o túmulo da Condessa, embora tivesse observado alguns dos túmulos que sempre tomava como referências.

O fato era que ele já estava cansado e estressado demais e não conseguia se lembrar do lugar exato do mausoléu. Então deu meia volta e se dirigiu rapidamente até o escritório da Administração.

O escritório da Administração ficava atrás da antiga capela e era, como quase todos os demais cemitérios da cidade, um lugar lúgubre, mal-ajambrado e escuro. Os seus móveis velhos e sujos pareciam que queriam combinar com o ambiente do cemitério que abrigava no seu interior aqueles antigos túmulos da velha São Paulo onde muitos hóspedes do outro lado da vida residiam há séculos.

Atrás de uma mesa, dessas bem antigas, ele viu um senhor, que devia ser parente do mordomo daquela série da TV, ‘A Família Adams’, com seu cabelo grisalho engomado e penteado com uma divisão bem ao meio, cheio de brilhantina, um terno preto surrado e uma gravata também preta toda suja e com o seu nó quase desfeito e bem folgado no pescoço. Em cima da mesa uma foto de determinada entrada de algum outro cemitério onde uma placa em arco estampava uma frase de mau gosto que parecia estar ali só para intimidar os visitantes: “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”. No fundo, atrás da mesa vários castiçais desses que se colocam ao lado do caixão, completavam a cena lúgubre e tenebrosa do local.

Ávido por resolver logo os trâmites e sair daquele lugar ele se sentou na frente do velho administrador e tirando uns papeis velhos de uma pasta surrada que carregava embaixo do braço, foi logo dizendo:

  • A minha prima era Condessa, a família dela tem um túmulo perpétuo neste cemitério, e preciso enterrá-la. Veja aqui os papéis.
  • O velho, sem se importar muito com toda aquela sua pressa, pegou vagarosamente os papeis amarelados, os colocou sobre a mesa e com suas mãos trêmulas, começou a olhar cada um deles, até que se levantou em câmara lenta, e sem dizer nada, caminhou até uma velha estante de onde tirou um enorme livro, sujo e empoeirado. Abriu o livro e começou a folheá-lo página por página, até parar numa determinada página de número 66.
    Então olhou por debaixo dos seus sujos óculos de leitura e apontando com o dedo para um nome escrito no livro, perguntou a ele:
  • O que você é deste fulano?
    Ele, sem pestanejar, rapidamente respondeu:
  • Meu primo! A falecida é minha prima, portanto somos todos primos!
  • Ah meu rapaz! Acho bem difícil ele ser seu primo porque este senhor que você diz nasceu em 1850!
    Ele, então meio nervoso, mas sem perder a classe, respondeu ao administrador, sem pestanejar:
  • Ah sim é o nosso primo tataravô!
  • Meu rapaz, disse o administrador, acho melhor começarmos de novo….
  • Meu apelido é Popó e eu como bom flamenguista estou achando você parecido com o jogador Zico, então vou chamá-lo de Zico. Vamos começar tudo do começo.
  • Se levante, entre por aquela porta e se apresente novamente.
    Ele, querendo resolver logo a questão e não criar caso, como se fosse um ator, encenando uma peça de teatro e obedecendo o diretor se levantou, saiu da sala e entrou novamente, não só pela porta, mas também para dentro daquele clima criado pelo engraçado administrador…
  • Bom dia Seu Popó, como vai? Meu nome é Zico!
    Ah agora sim, respondeu de pronto, sorrindo, o hilário funcionário.
  • Muito prazer Sr. Zico, sente-se por favor.
  • Vamos fazer assim Sr. Zico, o Sr. me dá um nome de um falecido da família já enterrado que eu encontro o túmulo.
    Ele então, nominou o nome do pai da Condessa, que já havia passado para a outra dimensão.
    O velho Popó começou a vasculhar outros livros antigos e depois de uns quinze minutos voltou e exclamou:
  • Ah não disse Seu Zico! Bingo! Achei!
  • E como lhe disse não podia ser aquele túmulo do seu tal primo tataravô!
  • É outro!
    Em seguida chamou um dos coveiros de plantão e ordenou que o acompanhasse para visitar os dois túmulos.
  • Primeiro você o leva o Sr. Zico ao túmulo do tal primo tataravô e depois ao outro onde o pai da Condessa está enterrado. Aqui estão os endereços das campas. Comentou o velho com o coveiro…
  • Vá lá Sr. Zico a ver os dois túmulos e veja se consegue reconhecê-los. Acho que estou certo de que o correto é o segundo, mas vamos tirar a prova. Disse sorrindo o velho gerente do cemitério, mostrando aqueles seus dentes amarelados pela nicotina.
    Tendo o coveiro como guia, lá foi ele novamente a caminhar por aquelas alamedas, embaixo do mesmo vento e da mesma garoa, que teimava em continuar caindo, a procura dos dois mausoléus.
    O primeiro túmulo, o do tataravô, era realmente quase que um monumento, com um grande obelisco ao centro, tendo no seu alto um enorme anjo esculpido em mármore branco. Nas suas lápides se podia ver toda a linhagem da família, esculpida no mármore, desde o casal precursor, o Conde e Condessa que tinham vindo com D. Pedro, até chegar aos mais recentes, que haviam sido enterrados em torno dos anos 50. O túmulo era extenso e envolvia três terrenos perpétuos e um gramado que o circundava por completo. Tirando o lado sombrio era uma obra de arte…
    Quando ele viu aquilo tudo e as datas de todos os que estavam ali enterrados, é que se deu conta da gafe que tinha cometido quando tentou convencer o administrador que o Conde tataravô era seu primo….
    Respeitosamente, ele fez o nome do pai em frente ao túmulo, logo imitado pelo coveiro, rezou uma Ave Maria e partiu em busca do segundo túmulo.
    O segundo túmulo ficava do outro lado do cemitério o que exigiu mais uma vez uma longa caminhada pelas alamedas frias e desertas. Era um túmulo mais simples que o primeiro, mas não deixava de ser um mausoléu cheio de adornos, estátuas e com aquela mesma ostentação mórbida.
    Enquanto caminhavam até a segunda campa ele foi obrigado a ouvir, mesmo sem ter interesse, o coveiro ir falando e indicando, como um guia turístico, os túmulos de gente famosa. Num deles o coveiro se empolgou e até parou para orgulhosamente narrar a história do costureiro celebridade que havia sido preso ao tentar roubar dois vasos de um jazigo. O coveiro entusiasmado ainda fez questão de apontar para o túmulo e dizer:
  • Veja senhor, são estes aqui, está vendo estes dois vasos que agora estão chumbados no túmulo, pois é, foram eles que o costureiro tentou roubar!
    Depois de atualizado involuntariamente sobre toda a história do cemitério e seus habitantes ilustres além do caso do célebre costureiro ladrão de vasos, ele finalmente chegou ao segundo túmulo, que logo reconheceu como sendo o da família direta da Condessa, onde o pai dela estava sepultado.
    Feito a identificação e a verificação de que havia lugar vago no jazigo e ajustado o preço da gorjeta obrigatória do coveiro, ele voltou ao escritório, para assinar os papéis, se despedir do simpático Popó e agradecer a ajuda.
  • Ciao Popó!
  • Ciao Zico, vá com Deus, você vai precisar!
    Naquele momento ele não entendeu muito bem a última frase do Popó, mas dias depois começou a perceber como tinha sentido. O Popó provavelmente era um místico e sabia ver o futuro…
    Saindo do cemitério, partiu rapidamente para organizar o velório. Esperava encerrar logo tudo aquilo assim que o caixão descesse para dentro da campa e a porta se fechasse. Já estava cansado de ser sempre ele a cuidar daquelas coisas.
    Horas depois, terminado a cerimônia e ver o jazigo finalmente ser fechado, a sensação de alivio foi logo substituída pela lembrança de que ainda tinha que passar na casa da Condessa para deixar todos os documentos, pois iria precisar deles para fazer o inventário.
    No caminho foi pensando, com seus botões:
  • O que tinha e podia ser feito eu fiz. Terminei minha missão com minha prima e a família.
    Ledo engano….
    Assim que entrou na casa da Condessa, a primeira coisa que fez foi se dirigir ao escritório e abrir o armário, em frente a escrivaninha, para depositar a pasta com os documentos e dar um fim naquilo tudo.
    Foi então que notou, no interior da estante, apoiado sobre um livro antigo, na primeira prateleira um pequeno envelope branco fechado, com um lacre vermelho.
    No lacre se podia ver claramente, estampado, o brasão da Condessa.
  • Como não vi isso antes? Pensou…
    Pegou logo o envelope nas mãos e viu escrito:
    “Só abrir depois que eu morrer….”
    Surpreso, não teve dúvidas, rompeu rapidamente o lacre, abriu o envelope e dentro encontrou apenas uma pequena chave, dessas de cofre, com uma etiqueta pendurada por uma fina fita vermelha, com alguns números escritos a mão e uma sequência de interjeições de gargalhadas:
    13-21-34-55
    Kkkkkkkkkk!!!!
    Como engenheiro que era e acostumado com números, logo percebeu que a sequência de seis números se tratava da famosa série de Fibonacci, gênio matemático que havia descoberto a proporção áurea, o número de Deus.
    Ao contrário do tinha pensado, o enterro da Condessa não tinha terminado com o fechar da sua campa. Os mistérios e surpresas, pelo jeito, só estavam começando….
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