
Todos os dias ele tomava o ônibus da linha 560, no mesmo horário, para ir ao trabalho.
Naquele dia chuvoso, sentado como sempre num dos bancos do fundo, é que ele se deu conta da quantidade de anos em que fazia o mesmo trajeto naquela mesma linha de ônibus, todos os dias, no mesmo horário.

Essa rotina havia começado quando ele se mudou para a capital, vindo de uma pequena cidade do interior, famosa pela cultura de café e havia arrumado um bom emprego numa empresa, cujos escritórios ficavam no centro da cidade, ao lado do Vale do Anhangabaú.
Quando a gente se utiliza do mesmo ônibus, todos os dias, começa a perceber várias daquelas pessoas que compartilham com a gente o mesmo trajeto, a mesma condução, pensou…
Era o velho senhor e o seu inseparável guarda-chuva, não importava o tempo, que subia no ônibus no terceiro ponto depois do seu, bem em frente a padaria do bairro.
Era a menina adolescente de calças jeans e livros embaixo do braço, que descia no bairro da Liberdade, provavelmente para frequentar um dos vários cursinhos pré-vestibulares que existiam por lá.
Era o senhor, com uniforme de porteiro de edifício, que sempre carregava a bíblia embaixo do braço e que a lia atentamente durante todo o trajeto até o ponto final, no centro da cidade.
Enfim eram vários os personagens, bem característicos, que seguiam aquela mesma rotina diária e que lhe permitia observar ali do banco, no fundo do ônibus, ao lado da janela.
Mas de todos eles, a pessoa que mais lhe impressionava, todos os dias, era a linda garota, talvez com seus vinte e poucos anos, cabelos castanhos claros, com mechas loiras e olhos claros, que subia no primeiro ponto logo depois do seu e que costumava se sentar também nos bancos do fundo.
Bem, pelo menos temos algo em comum…Foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça, no primeiro dia em que a viu, meio contrariado com a sua própria timidez.
Tinha uma vontade enorme de sentar-se ao seu lado, no mesmo banco, se apresentar, puxar conversa, conhecê-la melhor, saber um pouco da sua vida, o que fazia, de onde era, o que gostava de fazer, enfim conhecer um pouco daquela linda mulher, mas a sua timidez o impedia…
Diariamente, assim que entrava no ônibus, ele ficava ansioso, esperando a garota do ônibus entrar no ponto seguinte, para então lhe dirigir o olhar e ficar imaginando a conversa que teria com ela.
Além de admirar a garota, ele adorava sentir o seu perfume, que se espalhava pelo ar, assim que ela se sentava…. Ela sempre ficava uma fileira de bancos à sua frente.
Então ele observava e imaginava tê-la como sua namorada, pegar nas suas mãos, sentir o arrepio no encostar de braços, abraçá-la, beijá-la….
Aquela garota já era, para ele um verdadeiro amor platônico, quase que real, tantas eram os seus pensamentos imaginários, e os sonhos que tinha, quase todas as noites…
Para ele, só o fato de apenas cruzarem olhares, mesmo que inadvertidamente, já lhe dava motivo para sentir o coração acelerar e o suor escorrer pelas suas mãos.
Esse namoro platônico perdurou por meses, creio que anos, até que numa bela manhã, o ônibus da 560 quebrou e todos foram obrigados a descer para esperar o próximo que iria resgatar a todos os passageiros.
A quebra do ônibus foi providencial e ele percebeu ali, naquele momento, que nunca tinham estado tão próximos.
Então criou coragem e lhe dirigiu a palavra pela primeira vez:
-Oi tudo bem? Que azar o nosso este ônibus ter quebrado, não?
-Sim, é verdade, muito azar! Hoje vou chegar atrasada ao trabalho.
-Qual o seu nome?
-Lúcia, e o seu?
-Cláudio
-Olha lá vem o nosso ônibus!
Subiram os dois, mas como o ônibus estava muito cheio não conseguiram continuar aquela primeira conversa.
A partir daí, todas as manhãs, os dois se encontravam naquele ônibus e se sentavam no mesmo banco. Na verdade, assim que entrava no ônibus ele já reservava o lugar dela, ao seu lado.
A sua paixão platônica havia mudado de patamar. Agora ele já podia conversar com ela e os calafrios, o suor entre os dedos, o arrepio no tocar involuntariamente no seu braço e o coração acelerado já haviam substituído toda aquela sua timidez inicial.
O amor pairava no ar….
Depois de anos viajando diariamente juntos, houve um dia, em que ele não a viu subir no seu ponto. Depois a mesma coisa aconteceu no dia seguinte e assim foi durante toda a semana.
Estranhando a sua falta contínua ele ligou no trabalho à sua procura e foi informado que ela tinha pedido demissão e voltado para a sua cidade natal no interior paulista.
Por razões que ele desconhecia, talvez pelas mãos de Deus, suas vidas não mais se cruzaram. A garota do ônibus, do nada, havia desaparecido da sua vida….
O tempo passou e ficou para ele somente aquele sentimento de algo inacabado, mesmo sendo um amor não correspondido. Aquela garota tinha sido para ele a sua eterna namorada, aquela que foi, sem nunca ter sido.
Décadas se passaram e eles nunca mais se viram….
Certo dia, lendo uma crônica de um amigo escritor e conterrâneo no Facebook ele foi compelido a responder a um comentário de uma outra leitora na mesma crônica.
A crônica abordava o atentado as torres gêmeas, no onze de setembro, em New York e o fato de as pessoas estarem no dia certo, no lugar certo e por isso terem escapado da tragédia. A conclusão do autor era de que tudo ocorria pelas mãos de Deus.
Naquele momento, sua memória recebeu um ‘input’ e foi inevitável ele se lembrar do sumiço da garota do ônibus e pensou com seus botões: – Será que também foi pelas mãos de Deus?
Então foi ler a crônica e o comentário da leitora novamente:
“Não era a hora dessas pessoas. Os contratempos fizeram com que escapassem da tragédia. Mas infelizmente era a hora certa para aqueles que estavam lá e morreram. Não há erros, Deus faz tudo certinho mesmo que fuja à nossa compreensão. É como você disse, devemos confiar porque se não for a nossa hora, Deus nos guiará para outra direção.”
Ao reler o comentário dela, ele viu a sua foto e seu coração acelerou.
– É você garota? Não se lembra de mim? Lembra-se de que nos encontrávamos todos os dias pela manhã? Lembra-se do dia em que nos conhecemos?
-Nossa! É você mesmo garoto? Não acredito! Que coincidência!
-Sim sou eu! Como vai?
-Tudo bem e você?
-Tudo bem também. Desculpe, mas eu não acredito nesse comentário que você fez sobre as mãos de Deus, mas tudo bem, segue valendo.
-Cada um é livre para acreditar no que quiser. Eu não tenho pretensão de ser dona da verdade, mas respeito a sua opinião.
-Eu sei. Nem quis insinuar isso… Aliás eu sempre te achei uma garota dez! As vezes a vida muda a gente. Eu sempre questiono muito essas coisas e acho que só aceitamos isso por ter sido parte da nossa criação. Acredite a humanidade sempre foi enganada. Ah me desculpe, mas preciso lhe dizer isso: Você era, é e continua uma garota linda! Nunca me esqueci de você! Kkk…
-Assim, você me deixa encabulada!
-Você ainda se lembra por acaso do ano em que nos conhecemos?? Acho que foi por volta de 1979 ou 80!! Afff…
-Acho que não! Foi antes! Foi em 1974 ou 75. Faz tempo, não é?
-É verdade! Em 1978 eu entrei na faculdade pela primeira vez, então foi antes disso mesmo.
Nesse momento o autor da crônica interage com seus dois leitores:
-Lendo a conversa de vocês estou me inspirando para escrever mais um conto! Rsrsrs…
Diz a garota:
-Seus contos são sempre muito bem-vindos, mas não consigo imaginar como poderíamos, nós dois, com esse diálogo simples, sermos motivo de inspiração! “
-Os escritores vêm o cotidiano de modo diferente, já tenho até o título do conto: “A garota do ônibus”
Em seguida o casal de leitores retoma o diálogo:
-Onde foi mesmo que nos conhecemos pela primeira vez?
-Ahh! Isso nunca vou esquecer! Foi na linha 560 no dia em que o ônibus quebrou! Você se lembra?
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José Luiz Ricchetti – 16/09/2021