
Minha cidade natal sempre teve, como em muitas outras, aquelas pessoas que nasceram diferentes, aquelas pessoas que podemos dizer sempre foram especiais.
Durante a minha infância e adolescência eu tive a oportunidade de conviver com muitas dessas pessoas especiais. Como não conseguirei aqui mencionar todos, gostaria de registrar, com o todo o respeito, uma homenagem a todos eles, lembrando os mais conhecidos como o Gibe, o Aldo, o Mingo, o Berto e o Badida.
Nesse período do tempo não era comum que os pais e as famílias tivessem a facilidade e a oportunidade, como se tem hoje, de obter a ajuda de escolas, entidades privadas e governamentais, médicos, terapeutas e educadores especializados, para apoiar na educação mais adequada e na socialização desses nossos amigos.
É fato também, que nem todas as pessoas os viam através dos olhos da bondade e da compreensão e muitas vezes eles eram discriminados e hostilizados, o que hoje se chama de ‘bulling’.
Muitas são as histórias conhecidas e vividas por esses queridos personagens, no decorrer do tempo, que até podem ser consideradas pitorescas se vistas por um outro ângulo, mas que sempre nos trazem reflexões sobre a reciprocidade que ficamos devendo a todos estes seres humanos, pra lá de especiais.
Por exemplo, me lembro do dia em que um deles, sem que ninguém percebesse, ficou preso dentro de um caminhão de entrega de frios e foi parar numa outra cidade, depois de quase ter uma congestão ao comer muita mortadela pelo caminho; outra vez, um deles demonstrou toda a sua esperteza ao ser confrontado pelo pai, para descer do alto do telhado da sua casa, depois de subir através de uma escada esquecida pelo pedreiro; ou então das inúmeras passagens daquele menino, meigo que desde cedo corria pelas ruas da cidade, de calças curtas e que muitas vezes levava amarrado no pescoço uma lata como se fosse um bumbo e que batia continência para todo soldado que encontrasse pelo caminho e que mais tarde se tornou um Papai Noel dos mais festejados da cidade; tem também aquele que, com enorme dedicação, andava atrás da banda ajudando a carregar seus instrumentos; como também me lembro do outro que andava pela cidade, com sua calça ‘pula brejo’, presa com suspensórios e uma botina enorme, distribuindo gratuitamente seu sorriso e alegria para todas as pessoas com quem se encontrava.
Enfim eles eram na sua essência personagens da nossa cidade, mas antes de tudo figuras doces que apesar das hostilidades que as vezes sofriam, sempre preencheram com seu amor as famílias, os amigos mais próximos e por que não dizer toda uma cidade.
Assim para fazer essa justa homenagem, seria preciso, e interessante saber, antes de mais nada, o que elas pensam, o que sentem, enquanto as enxergamos como sendo pessoas diferentes.
Foi por isso que imaginei estar me apossando dos pensamentos de cada um deles, por um único dia. Só assim seria possível saber qual a real impressão que eles têm de nós e não a que nós temos deles.
E assim, como que se fosse permitido por Deus, através de um pequeno milagre, eu entrei na cabeça de cada um deles e comecei a ler os seus pensamentos.
Logo, muitos questionamentos começaram a fluir…
“- Por que somos vistos como pessoas diferentes?
– Só porque ganhamos algo a mais que os demais? Só porque o tal cromossoma 21 resolveu se instalar nos nossos corpos, no dia em que fomos concebidos?
– Pois saibam vocês que esse cromossoma danadinho, que temos a mais, veio somente para nos trazer muito mais amor que a maioria das pessoas.
Por trazer o amor é que Deus nos deu uma missão importante, que acho que já conseguimos passar a todos que conviveram conosco, no decorrer de nossas vidas.
Esse cromossoma veio para mostrar a todo mundo, que a capacidade intelectual não é tudo e que mesmo quando a gente tem uma certa deficiência, podemos passar pela vida, gerando muito mais amor e alegria que a grande maioria das pessoas.
Acho que a gente conseguiu também mostrar que, no mundo de hoje, as pessoas dão um valor excessivo para a razão, o que faz com que se esqueçam da emoção e do quanto é importante amar.
Afinal nós provamos que além da ‘via da razão’ existe uma outra via, muito mais importante, que é a ‘via do coração’ onde mora a compaixão, a fraternidade, a caridade, a doação e tantas outras qualidades geradas pelo amor, que temos para dar e vender.
Hoje temos certeza de que o fato de sermos diferentes, é o que nos possibilitou que transformássemos cada dor em alegria, cada insegurança em esperança e cada desafio em uma vitória. “
(…)
Continuo a pensar junto com eles, de dentro de suas mentes e então surgem alguns outros interessantes questionamentos:
“- Como vocês podem ser amorosos como nós, se ainda não amam plenamente a si mesmos?
– Como podem ser cordatos como nós, se ainda discordam de si mesmos?
– Como podem ser alegres como nós, se ainda vivem muito próximos da tristeza?
– Como podem ser simples como nós, se ainda desejam ter muito mais que do que precisam?
– E sabem o que é mais engraçado?
– Apesar de nós sermos ‘os diferentes’, muitos de vocês ainda não perceberam que somos felizes assim e que sempre gostamos de ser o que somos e como somos.
Sabemos que temos um imenso amor-próprio e todos os que tem amor-próprio estão sempre contentes e felizes. Felizes com o que são e com o que possuem.
– E podemos lhes contar mais um segredinho?
Na verdade, fomos nós mesmos que pedimos a Deus para vir assim, desse modo, diferente… Sabem por quê? Porque sabemos que assim a nossa evolução espiritual será mais rápida…
Por outro lado, temos certeza de que o fato de sermos ‘os diferentes’ é o que nos trouxe muita sabedoria. Por isso quando sentimos que vocês nos vêm assim como alguém diferente, consideramos isso um grande e enorme elogio.
Do nosso lado tudo é livre e de tal natureza que quanto mais somos diferentes, sentimos que maior é o bem que podemos proporcionar a vocês e acreditamos que sem a nossa alegria de viver, talvez muitos de vocês ainda estivessem mergulhados na tristeza.
Afinal o fato de sermos diferentes, é que faz com que possamos nos dar ao luxo de sermos muito mais criança que vocês, lembrando que toda criança é dona do amor, da alegria e da bondade, coisas natas que vemos muitos de vocês procurando e gastando um tempão tentando encontrar!”
(…)
Impressionado com toda aquela lição de vida, saio então de dentro daqueles pensamentos dos nossos amigos ‘diferentes’ que têm o coração enorme, muito mais doce e feliz que os nossos e volto para terminar esta crônica como uma justa homenagem.
Nesse momento me veio a enorme certeza de que esses nossos amigos especiais, muito antes de nós, já nasceram sabendo, que enquanto existir o amor, não haverá diferenças.
José Luiz Ricchetti – 12/06/2021