Álbum de retratos, por José Luiz Ricchetti

Hoje, fazendo uma arrumação no meu armário, encontrei um velho álbum de retratos.

Abri e comecei a ver as fotos antigas, desde os meus tempos de criança, no colo de minha mãe, ao lado do meu pai, junto dos meus irmãos.

No meio de tantas fotos, tantos retratos, encontrei uma de quando eu devia ter talvez alguns dias de vida e então fiquei pensando na alegria dos meus pais, naquele momento.

Imediatamente me lembrei também de como me senti, quando nasceram meus filhos e minha neta. Me lembrei da alegria que cada um desses nascimentos me trouxe. 

Em cada um eu senti uma felicidade, uma energia diferente, pois sempre acreditei que, espiritualmente, não somos em nada iguais, quando comparados um com o outro, seja pela energia própria que trazemos desde o nascimento, seja pelas experiências de outras vidas que carregamos impressas na alma.

Pegando aquela primeira foto, imaginei a cena do meu pai ligando para o fotógrafo da cidade, para que viesse em casa, talvez até com uma daquelas máquinas antigas, tipo ‘lambe-lambe’, para tirar o meu primeiro retrato. Digo isto porque, na década de 50, não era normal alguém ter a sua própria máquina fotográfica.

Fui então folheando aquele álbum desde o início, e vi que haviam poucos retratos meus, da fase de bebê e deduzi que as fotos que estavam lá, deviam ter sido tiradas com alguma máquina simples, emprestada de alguém, pois além de poucas, quase não se via nitidez.

Aí vieram fotos de férias na praia, eu ainda menino. Em algumas delas eu devia ter cinco ou seis anos de idade e retratavam uma época em que íamos passar as férias na longínqua Mongaguá, na Praia Grande, onde meu pai costumava alugar, todos os anos, uma casa para passarmos o verão. 

As fotos de Mongaguá me fez lembrar o quanto era difícil chegar lá. Não existia uma estrada e toda a viagem, a partir da Via Anchieta, era feita pela praia mesmo, numa enorme e carregada perua Chevrolet, enfrentando os pequenos rios e córregos com atoleiros, que se moviam de lugar, conforme a subida ou descida da maré. 

Ir para Mongaguá ou qualquer daqueles lugarejos da praia grande, nessa época, era um grande e emocionante desafio, uma enorme aventura, repleta de emoções.

Foi numa dessas fotos que me vi, com as costas toda vermelha, do sol, ali na praia, construindo castelos de areia, com um conjunto de baldinho e pá, brincando na beira d’água, sentado naquela areia cinza, olhando as ondas que chegavam perto, até a ponto de molhar o meu calção listrado, confeccionado em algodão.

Depois avancei por mais algumas páginas e vi então outros retratos, tirados em volta do coreto, ‘pulando a banda’, como dizíamos, ali na minha terra natal, São Manuel, segurando bexigas coloridas na mão. 

Bem junto dessas fotos do coreto, achei também várias outras, tiradas com os meus primos, tios e avós, em volta de mesas enfeitadas com doces e o bolo de aniversário, bolo este, daquele tipo tradicional à época, coberto de suspiro e enfeitado com aquelas duras e prateadas bolinhas de açúcar. Com certeza eram todas fotos de aniversários da família, provavelmente de algum primo ou prima.

Achei também uma foto da tradicional Festa da Aparecida, um pequeno distrito ao lado da minha cidade, onde estou todo feliz da vida, segurando minha caneca de alumínio colorida, tendo na sua frente o meu nome gravado, naquelas espalhafatosas letras góticas. 

Quanto mais eu avançava nas folhas daquele álbum de retratos, mais apareciam fotos com algum significado importante da minha vida, como a entrega do meu diploma de primário, hoje chamado de ensino fundamental, e logo em seguida uma outra, em que apareço recebendo o prêmio de melhor aluno (desculpem a falsa modéstia). 

Depois foram surgindo mais e mais fotos da fase de adolescente. Os meus maravilhosos anos dourados…

Eram fotos com amigos, fotos do time do colégio, fotos da final que disputei, como velocista dos 100 metros rasos, no Pacaembu, algumas da procissão de Corpus Christi, enfeitando as ruas, nas madrugadas frias de São Manuel e por aí vai…

Eram retratos do primeiro baile, da primeira namorada, das meninas, que vinham passar férias na cidade, uma outra foto em frente a fonte luminosa do Santuário, muitas outras de jogos de futebol, seja no campinho do Seminário de padres, na quadra do Instituto de Educação ou no velho Estádio Municipal… 

Tinha até um desses retratos, eu na piscina do Tênis Clube, onde ao fundo reconheci o velho ‘Seu Jorge’, aquele simpático zelador do nosso clube. Nesta eu aparecia correndo em volta da piscina grande, imagino que brincando de pega-pega. Algumas outras me vi em cima do trampolim ou tomando sol, junto com um grupo de amigos e amigas…

Em seguida apareceram fotos de quermesses, de jogos da alta sorocabana, de jogos da seleção de basquete e vôlei do colégio, até que vi uma em que estou numa “festa do peão”, o que me fez lembrar, que os políticos, certa vez haviam tentado emplacar este evento na cidade, muito antes do sucesso de Barretos, mas que, talvez por falta de empenho ou capacidade, não tenham conseguido. Uma pena, diga-se…

Surgiram depois, na sequência inúmeros retratos, de férias na fazenda, nos bancos do jardim, outras fotos com velhos amigos, outras com a primeira namorada, fotos de blocos de carnaval, dos desfiles de 7 de setembro e também alguns retratos do Tiro de Guerra, turma de 1970, último ano em que morei na cidade…

Essa foto do Tiro de Guerra, me trouxe à memória o dia, em que deixei a cidade. Foi quando tudo isso, ficou para trás e parti para tentar novos horizontes na capital. Estudei engenharia, me formei, corri o mundo, casei, descasei, amei, desamei, amei outra vez…

Acabei até realizando aquelas três coisas que um velho poema diz, que todo homem precisa fazer antes de partir deste mundo, ou seja tive filhos, plantei árvores e escrevi um livro! 

Hoje, passando os olhos por todas essas fotos, esses retratos da minha vida, percebi o quanto eles estão velhos, amarelados e descoloridos pelo tempo. 

Tempo que devorou não só as fotos, mas também levou junto, muitos nomes, diversos lugares, algumas identidades, muitos dias, inúmeros anos, forjou amores e plantou lindas saudades…. 

O tempo, como se fosse uma traça, avançou sobre nosso corpo, nosso rosto, nossos cabelos, nossos olhos, comeu ideias, estragou livros, puiu amizades e nos deixou com as rugas….

Ah esse terrível tempo que comeu cada segundo e nos devorou, quase por inteiro, arrebatando consigo inúmeras alegrias, tristezas, esforços, barreiras, tombos e vitórias…

Tempo voraz que veio comendo tudo, e que a partir do nascimento, sorveu a infância e adolescência, a fase adulta e que agora está aqui conosco ainda mais esfomeado, lado a lado, nos acompanhando na maturidade. 

Essa esteira do tempo que fez desaparecer muito rápido aqueles nossos banhos no rio, os passeios de bicicleta, o estilingue e o alçapão, as pipas, os carrinhos de rolimã, as peladas, as bolinhas de gude, o estojo de lata com lápis de cor, a borracha de duas cores e o apontador colorido. 

Tempo que aboliu aquelas sessões do cinema novo, de terno e gravata, os filmes censurados, do cinema dos padres e as trocas de gibi na entrada do cinema velho. Tempo que submergiu com o cirquinho do Piranha, com aquelas maravilhosas quermesses, com seus sanduiches de linguiça, quentão, pipoca, algodão doce, pamonha, quebra queixo e pé de moleque.

Tempo que nos roubou o gosto de chupar uma manga no pé, de ouvir o estalar da jabuticaba na boca, de sentir nos dentes os gomos da mexerica caipira, o azedo da uvaia e aquele esquisito grude verde do jatobá.  

Tempo que nos levou, muito antes do tempo, pais, tios e avós, colegas de escola, amigos de infância e companheiros do Tiro de Guerra.

Tempo que nos deixou a saudade do primeiro baile, da primeira namorada, da euforia do primeiro fogo, bebendo um ‘Fogo Paulista” ou um ‘Rabo de Galo’. 

Tempo que escondeu o sabor do sorvete de coco queimado do ‘Chiquinho’, a emoção de namorar escondido, na esquina e os beijos e abraços nos bancos do largo da Igreja Matriz. 

Ah esse terrível tempo que quase levou tudo! 

Mas não conseguiu levar estes meus retratos, nem tampouco meus pensamentos. Pensamentos que são como os retratos! Retratos da alma!

Enfim, tenho agora, bem na frente dos olhos, esses retratos que aguçam a memória, trazendo de volta todas essas lembranças, transformadas nas saudades mais bonitas.

Saudades mais bonitas, que ilustram momentos marcantes da minha vida, mas com certeza, também da sua vida. Como se nós todos estivéssemos entrelaçados pelas linhas de um mesmo e lindo desenho, construído por Deus. 

Cada retrato, cada pensamento, cada bonita saudade representa cada um de nós, e que escapam agora, transformadas em palavras, para preencher esta crônica, como se ela fosse o nosso álbum partilhado e tivéssemos agendado este encontro, na nossa linda cidade natal, desde dia do nosso nascimento, no mesmo espaço e no mesmo tempo.  

Da vida, sempre sobram as lindas lembranças que nos dão a certeza de que nada é em vão e que todas as passagens, todos os momentos, gravados em retratos, se transformam na maneira mais bela, mais linda de vermos o tempo passar.

E, nesta nossa luta insana contra o tempo, em que buscamos viver ao máximo a vida, dia a dia, retrato a retrato, todas as lembranças, aliviam e fazem bem à nossa alma. 

Mas mesmo assim, ainda poderá ter alguém que duvide disso e nos pergunte:

– Mas afinal o que restará, quando o nosso tempo acabar? 

Podemos então lhe responder:

– Ah meu amigo, pelo menos, restará, o nosso álbum de retratos….

José Luiz Ricchetti – 16/09/2020

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