Artigo: O ‘dream team’ caipira

Artigo: O ‘dream team’ caipira

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Já tinham se passado pelo menos duas horas em que estávamos parados no acostamento da estrada Marechal Rondon. Nossa velha Kombi, modelo luxo, tinha quebrado a correia do alternador e nosso esperto motorista não tinha uma sobressalente.

A Kombi modelo luxo era aquela que tinha duas cores (a nossa era aquele azul calcinha e branco) e o acabamento interno era um pouco melhor que os demais modelos. Como charme adicional ela era decorada com clássicas cortininhas internas nas suas janelas, tinha um longo estribo na frente da porta lateral e um enorme bagageiro, de cor prata, no seu teto.

Eu sempre tinha ouvido falar que se você andasse com qualquer carro da Volkswagen, tendo no porta malas apenas uma correia sobressalente, um cachimbo do distribuidor, um alicate, uma chave de fenda e mais um pedaço de arame, você poderia rodar o Brasil inteiro sem qualquer problema. Percebi naquele dia que o nosso motorista ou era surdo ou ainda não tinha escutado ainda essa história….

Estávamos acostumados a viajar nessa Kombi pelas inúmeras cidades da região, para irmos jogar com o nosso time de basquete do colégio, sempre levados por três dos nossos professores, o de Educação Física e nosso técnico, o professor de Física e o professor de Matemática. Sim, esses grandes mestres eram os nossos guardiões, os nossos três mosqueteiros em defesa do esporte, ou melhor dizendo os nossos padrinhos. Eram eles que do próprio bolso custeavam todas essas nossas viagens para os jogos amistosos, pelas cidades da região no entorno das estradas de ferro: Alta Sorocabana, Noroeste e Araraquarense.

Esses nossos mestres, tinham uma maneira peculiar, de nos incentivar, as vezes antes das partidas, as vezes durante e outras vezes depois da partida. Eles no prometiam uma nota dez ou algum ponto adicional na média, para fazer parte da nota final do bimestre junto com as notas das provas oficiais das matérias envolvidas. Acho que a ideia era incentivar-nos do mesmo modo que as universidades americanas costumam fazer quando premiam os seus atletas, nas várias modalidades, contando pontos para passarem de ano. O fato era que adorávamos aquilo e nos esforçávamos ainda mais.

Nosso time era muito bom, era como se diz hoje, muito bem “encaixado” nas suas peças e jogava como música, daí a facilidade com que recebíamos convites de várias cidades da região, porque era o time a ser batido. Se fosse hoje com bastante exagero e põe exagero nisso, nós seríamos o Dream Team Caipira do Colegial, nome que com certeza teria sido inspirado no verdadeiro Dream Team Americano caso a gente tivesse uma bola de cristal e tivesse visto antes o verdadeiro Dream Team,  jogar, 15 anos depois, quando aquela seleção americana de basquete disputou as Olimpíadas de 1982 em Barcelona.

Mas o fato era que estávamos em 1967 e ali parados, dentro da velha Kombi luxo, numa estrada, sem alternativas de curto prazo, já que não havia nenhum posto ou oficina por perto. A única saída que tínhamos, naquele momento, era aguardar a chegada do elegante Simca Chambord e os nossos três mosqueteiros, para vir nos socorrer.

O Simca Chambord era um carro “top de linha” nessa época e era o xodó do professor de educação física e técnico. Era um carro todo verde escuro, teto bege e também uma faixa bege na sua lateral começando na porta de traz e terminando no final do para-lama trazeiro. Era um carro clássico e lindo demais na época, embora para mim continue sendo bonito até hoje.

A informação que o motorista havia nos dado era de que os nossos padrinhos estavam atrasados porque no dia anterior um outro professor teria feito aniversário e eles tinham ficado até tarde na festa…. Tinha sentido porque eles realmente gostavam de se encontrar onde houvesse um cantinho e um violão, para curtirem juntos as músicas do seu tempo (deles).

Bem nós éramos em nove jogadores mais o motorista, ali dentro daquela Kombi. Dos nove, dois eram bem altos, os únicos realmente altos do time e passavam o tempo todo resmungando de dor nas pernas, em função do estreito espaço entre os bancos.

O engraçado é pensar que naquela época, embora a maioria de nós só tivesse 15 anos, estando assim no segundo estirão de crescimento, não éramos muito altos, se comparados com os jovens dos nossos dias. Mas a época era outra e hoje vemos que em qualquer lugar do mundo se exige que os potenciais jogadores de basquete ou vôlei tenham não somente altura, mas sejam extremamente altos.

Enquanto aguardávamos o Simca chegar, um dos nossos atletas, o mais alto, por sinal, o nosso grande pivot (posição de penetração e rebote no basquete) precisou entrar no matinho, para aliviar sua bexiga. Ele era alto e desengonçado tanto para andar como para correr, mas pela vantagem da estatura, nos jogos ele nos garantia ótimos rebotes e com isso tinha lugar garantido no nosso time titular.

O nosso espigado magrelo, desceu o pequeno barranco que separava a pista, ao lado do acostamento e se embrenhou numa pequena curva de nível, como se fosse uma trilha. Não sei se porque se abaixou ou talvez por causa do mato alto, já não conseguíamos enxergá-lo no meio do matagal, que margeava a estrada.

Passados alguns minutos, ouvimos gritos, acompanhados de uma barulheira de folhagens batendo. Quando olhamos na direção dos gritos vemos o nosso magrelo, quase pelado, segurando as calças com a mão, se debatendo todo e gritando:

 – Corre que aí vem as “bêias”, corre que vem as “marditas bêias”! corre porque elas tão picando pra cacete!

Ali naquele momento percebi que estávamos todos bem treinados tanto em preparo físico como em tática de movimentação do garrafão (local demarcado logo à frente da cesta numa quadra de basquete) pois, assustados, mas sem falarmos nada um com o outro, partindo de direções diferentes, corremos todos juntos para dentro da Kombi e fechamos rapidamente as portas e janelas. Claro que sobrou umas boas picadas bem distribuídas para todos, bem mais para o nosso Pivot que tinha esbarrado na colmeia e até para o motorista que foi o último a entrar na perua.

Estávamos em pleno verão e naquele dia o sol castigava o teto da Kombi, a temperatura devia beirar os 34°C, dava para ver o vapor se levantando do asfalto e nós todos ali, fechados naquela Kombi, respirando aquele ar cansado, suando que nem bica e sem ninguém com coragem de sair da perua e enfrentar as “bêias” e sinalizar para os professores que iriam passar a qualquer momento. Olhei para o motorista e ele já percebendo o que eu ia dizer, me respondeu: – Nem vem que não tem, eu não saio!

Ficamos ali naquela sauna, por um tempo, até que as abelhas pararam de rodear a Kombi e se foram, conseguimos sair da Kombi quase que no mesmo momento que o Simca verde, como um bólido, apontou no alto da lombada, que precedia a nossa parada obrigatória. Os mestres chegaram, riram muito da nossa situação, mas o principal é que nos resgataram, usando uma corda improvisada, que tinham no porta malas e rebocaram a nossa perua.

Naquele dia, obviamente a viagem terminou ali e o nosso jogo teve que ser cancelado. Lá fomos nós todos, de volta para a cidade, frustrados, picados, um pouco inchados, para fazermos a entrada triunfante, desfilando pela avenida principal, com nossa Kombi luxo sendo convenientemente puxada pelo “fashion” Simca Chambord.

No final de semana seguinte o Professor, como carinhosamente chamávamos o nosso querido mestre e treinador, já tinha organizado um novo jogo. Desta vez seria na cidade vizinha, a apenas 20 km da nossa cidade. Com isso a viagem iria ser bem rápida e fácil, mas não imaginávamos que seria muito mais “picante e quente” que a viagem da semana anterior…

Havia uma rivalidade enorme entre as duas cidades, em todos os aspectos, desde a política, passando por esportes, área sociais, etc. Por exemplo se havia um baile em qualquer das duas cidades e aparecesse algum gaiato visitante da outra cidade, podia apostar que terminava tudo em uma briga homérica, pois sempre se dava como certo que o objetivo do intruso visitante era “tomar” as namoradas da cidade vizinha. Assim o pau comia solto!

Saímos por volta das 19 horas e 15 minutos depois chegamos ao ginásio da cidade vizinha e vimos que estava completamente lotado. Quando encostamos nossa charmosa Kombi na entrada do Ginásio, a torcida, simpaticamente, já começou a lembrar de nossas queridas mamães, num sinal claro de que uma grande e calorosa recepção nos aguardava, aquele jogo prometia…..

Com aquele grande coro da torcida adversária em homenagem às nossas mães, começamos perdendo logo nos primeiros cinco minutos de jogo, talvez até pelo nervosismo em função da pressão da torcida, mas aos poucos o nosso jogo foi encaixando, empatamos e assumimos a vantagem de 6 pontos à frente.

Foi quando o juiz, que era da cidade deles, começou a puxar a brasa para sua sardinha e a marcar faltas inexistentes e barrar nossas jogadas. Em poucos minutos o time deles não só empatou, mas livrou 4 pontos de vantagem. Era impossível aguentar aquela situação, ainda mais sabendo que nosso time era infinitamente melhor, afinal éramos o “Dream Team Caipira”. Era muita sacanagem daquele Juiz!

A última coisa que me lembro do jogo é que quase ao final, quando eles já tinham aberto 10 pontos de vantagem, o juiz marcou mais uma falta inexistente sobre mim. Eu então muito nervoso, me aproximei e dei um forte empurrão, seguido de um trança pé no juiz abusado e de barriga avantajada. Ele então se desequilibrou, caiu feio em função do seu excesso de peso, e antes que ele se levantasse alguém, que não me lembro quem, foi lá e aproveitando lhe meteu um chute no trazeiro. A bunda dele doeu, a torcida invadiu e o pau comeu!

Graças a Deus, nós todos, talvez até em função daquele treinamento adicional praticado com a revolta das abelhas no final de semana anterior, conseguimos fugir rapidamente e se trancar no vestiário.

Ficamos um bom tempo ali, trancados, morrendo de medo, pois a torcida queria invadir a qualquer custo e nos pegar.

Depois de um tempo, em que segurávamos a porta como dava, ouvimos um som de estouro, que não sei até hoje se foi rojão ou tiro, e aos poucos a coisa quase que silenciou completamente, o barulho diminuiu e a pressão na porta do vestiário cessou, ouvimos vários gritos e berros, mas fomos, aos poucos, nos tranquilizando, até que o Professor ouviu alguém, se identificando como policial, gritando que ele podia sair.

Ele saiu do vestiário, cuidadosamente e voltou depois de uns 10 minutos e disse:

– Fiquem tranquilos, a polícia já tomou conta da situação e vamos poder ir embora.

Ele só não havia dito, como iríamos sair dali…..pegamos nossas coisas, e saímos ainda assustados do vestiário. A polícia havia formado um corredor de policiais, para nos proteger, mas ainda havia muita pressão da enorme torcida adversária, gritando palavras “singelas e doces” para nós e empurrando os policiais. Conseguimos sair e entrar no camburão, não sem antes recebermos alguns “croques” e tapas no “pé de orelha” de vários torcedores. Sim, conseguimos sair de lá de dentro daquele ginásio espremidos num camburão da polícia, mas pelo menos sã e salvos, sem nenhum arranhão!

Apesar do sufoco daquele dia, hoje, pensando bem, acho que até podemos nos orgulhar da maior ovação que o Dream Team Caipira, recebeu em toda a sua carreira infanto juvenil.

Naquele dia, uma multidão enorme fazia de tudo para nos “abraçar”, torcedores gritavam bem alto nossos nomes, adjetivadas por palavrinhas doces de baixo calão, num coro incrível, uma verdadeira ovação que tenho certeza, nem os reais craques do Dream Team jamais receberam da fanática torcida americana….

O fato é que “Dream Team” ou não esse tempo foi para todos nós um lindo sonho, parafraseando “A Beautiful Dream”, muito gostoso de viver e de contar.

Hoje ao recordar desses dias, me emociono pelos bons sentimentos guardados, pela boa lembrança dos amigos que fiz, pelas viagens inesquecíveis na Kombi, pelos nossos três grandes mestres e por todos os que se foram e que não podem mais estar aqui para compartilhar a leitura deste texto.

Com toda essa saudade, vem também junto uma grande emoção, meio que misturando um pouquinho daquele mesmo frio na barriga e incerteza do começo de cada jogo, com o medo que senti naquele dia na saída do vestiário do ginásio, naquela noite, naquela cidade vizinha, conhecida pelos seus bons ares…

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SOBRE O AUTOR:
José Luiz Ricchetti, nascido em São Manuel, é oriundo de famílias das mais tradicionais da cidade como Ricchetti, Ricci e Silva, é casado e tem 3 filhos. Engenheiro Mecânico pela Escola de Engenharia Industrial – EEI, com pós-graduação na FGV em Administração de Empresas e Comércio Exterior, tem MBA na área de Gestão de TI e Telecom pelo INATEL-UCAM, tendo atuado por mais de 35 anos, como executivo de grandes empresas brasileiras e multinacionais no Brasil e no Exterior.

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thiagomelego

Jornalista por tempo de serviço, Radialista, Administrador, tecnólogo em Recursos Humanos. Estuda Análise e Desenvolvimento de Sistemas.

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